A Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ recebeu no mês de abril um grupo de ex-alunas do Colégio Brigadeiro Newton Braga, na Ilha do Governador, na Zona Norte do Rio, que disseram ter sofrido assédio sexual por parte de dois professores da instituição subordinada à Força Aérea Brasileira (FAB).

As denúncias apontam para possíveis abusos que teriam acontecido entre os anos de 2014 e 2020, quando algumas estudantes ainda eram menores de idade.

No material entregue aos advogados da OAB estão prints de trocas de mensagens, áudios e relatos que indicam um comportamento abusivo constante dos professores Eduardo Silva Mistura e Álvaro Luiz Pereira Barros, responsáveis pelas aulas de História e Educação Física, respectivamente, dos alunos dos ensinos médio e fundamental.

O g1 mandou mensagem para os dois e conversou com o advogado que atende os professores, mas apenas o professor Eduardo retornou as ligações e negou todas as acusações. (Veja a resposta completa do professor no final da reportagem).

Já a direção do Colégio Brigadeiro Newton Braga confirmou a abertura de sindicância para apurar os fatos.

O objetivo do grupo de ex-alunos é buscar auxílio jurídico na comissão da OAB para que o caso seja investigado pelo Ministério Público Federal (MPF), uma vez que a instituição é ligada a uma das forças militares brasileiras.

Segundo os estudantes, a direção do Colégio Brigadeiro Newton Braga é conivente com as práticas abusivas, visto que as investigações internas começaram em junho de 2020 e ainda não foram concluídas.

De acordo com a advogada Brunella Moraes, responsável por atender as jovens, a instituição ligada à Aeronáutica abriu um Inquérito Policial Militar para apurar os casos. Contudo, a Justiça Militar ordenou que as investigações só teriam sequência depois de uma avaliação interna da escola, através de Processos Administrativos Disciplinares (PADs).

“Essas denúncias ocorreram há dois anos e até agora nenhuma atitude por parte da escola foi feita. A gente está sentindo que a escola está de uma certa forma atrasando o andamento do que já tem e que não está tendo desfecho necessário”, disse Brunella Moraes.

“Vamos reunir o que temos de prova, de denúncias feitas, e vamos encaminhar ao Ministério Público Federal para que o MPF tome as providências necessárias”, completou.

Apesar das denuncias apontarem para suspeitas de assédio sexual entre os anos de 2014 e 2020, segundo as alunas, elas só procuraram apoio jurídico agora por conta da retomada das investigações internas da instituição.

No início do ano, algumas delas foram chamadas para prestar esclarecimentos sobre postagens feitas em 2020, quando alunos criaram um perfil numa rede social para denunciarem possíveis práticas abusivas de professores da escola. O evento ficou conhecido como ‘Exposed Newton’.

Durante os depoimentos para a investigação interna, as jovens relataram que se sentiram mais como suspeitas por alguma infração do que como possíveis vítimas de assédio.

Uma delas, inclusive, contou que teve que responder perguntas de um advogado do professor Eduardo sobre sua saúde mental. Segundo a jovem, eles tentavam desqualificar suas acusações colocando em dúvida sua lucidez.

“Eu achei que o Eduardo estava me processando. Tentaram desenhar um personagem de que eu era maluca. Me perguntaram se eu já tinha tentado suicídio, se eu tomava remédios controlados, se eu tive depressão. Eu fiquei sem entender”, contou uma das jovens.

Denúncias
Em um dos prints apresentados, uma conversa atribuída ao professor Eduardo Mistura com uma aluna menor de idade, a insistência dele chamou atenção.

O professor afirmou: “Já estive em ti, em pensamento, várias vezes. Você é a beleza e a pureza juntas”.

Para essa jovem, o professor também teria dito: “Gostaria de ter você nos meus braços. Tenho pensado tanto em ti”.

Na sequência dessa conversa, a aluna questiona por que ele tem pensado tanto nela.

Arquivo pessoal

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“Ora, mas por quê? Desculpa perguntar. Eu não tenho nada de especial para ser motivo de pensamentos”, disse a aluna.

O professor então afirmou: “Você é linda. Quero te pegar no colo. Você é toda especial. Deixa eu te ver e te pegar no colo…”

Certo tempo depois, Mistura voltou a mandar mensagens para a mesma aluna. Ele inicia a conversa dizendo que sonhou com ela e descreveu o que teria acontecido em seus pensamentos.

“Tenho saudade. Sonho sereno… Um abraço com você no meu colo. Sentia teu coração”, teria escrito o professor.

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Durante a troca de mensagens, o professor de história diz que eles precisariam tomar um café juntos. Ao perceber a resistência da jovem, Mistura sugere então que ela fuja.

“Eu te busco… Você precisa se deixar amar. Sem enquadramentos!”, disse ele.

A jovem responde: “É tão difícil”. E ele insiste: “Depende de você. Desfaça as amarras”.

Redação para levantar possíveis vítimas, dizem ex-alunas
Uma das jovens que procurou ajuda da Comissão de Direitos Humanos da OAB disse que o professor de história tinha uma prática pouco comum. Segundo ela, todo início de ano, Eduardo Mistura pedia que os estudantes escrevessem uma redação sobre seus problemas pessoais, laços de família e eventuais preocupações.

De acordo com essa aluna, as redações serviam para que o professor estudasse o perfil de cada aluna e assim definia qual seria a jovem mais vulnerável. A advogada que recebeu as denúncias e conversou com as ex-estudantes concordou com essa avaliação.

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Segundo as alunas, Eduardo Mistura era muito querido pelos estudantes. Uma das jovens que buscou ajuda contou que ele era diferente dos outros professores do colégio, dava mais liberdade aos alunos e ganhava a confiança de todos com um jeito mais divertido.

“Desde o primeiro dia ele passava essa confiança, que ele estaria ali para ouvir os alunos, saber o que eles tinham a dizer. No ensino médio, a gente tá se preparando para o Enem. É uma pressão gigante e muitos professores do Newton tratavam os alunos como robôs, eram secos, as vezes mais grosseiros. Ele tinha essa abordagem mais passional e todo mundo foi pegando confiança. Muitos alunos o veneravam justamente por conta disso. E assim ele construía a imagem dele”, relatou uma jovem.

“Ele leu minha redação e depois disso ele ficou mais próximo de mim. Ele falava que era meu voyeur”, disse uma das jovens, que na época tinha 16 anos.

A jovem, que tem medo de revelar sua identidade, disse ao g1 que o professor Eduardo Mistura passou a “stalkear” suas redes sociais. A expressão em inglês, que significa perseguir, é usada para explicar o comportamento de alguém que passa a buscar tudo sobre uma outra pessoa na internet.

“Tudo começou quando ele falou que leu a minha redação e disse que me admirava muito. Nessa época, eu tinha uma visão dele como um paizão para todo mundo. Ele era divertido. Eu achava estranho como ele falava comigo, mas pensava que seria uma coisa só da minha cabeça. Em 2018, a situação já era pior, ao ponto de, se eu visse ele no corredor, eu dava meia volta. Eu passei a evitar ele”, relatou uma das possíveis vítimas.

“As mensagens começaram em 2016. Ele falava: ‘Poxa, eu te vi hoje e você estava tão triste. Eu queria te colocar no colo, eu queria te levar para longe'”, relatou a jovem.

Áudio fala em ‘raptar’ ex-aluna
Entre as denúncias contra os professores, um áudio que seria do professor de história Eduardo Mistura para uma ex-aluna dele também foi apresentado como prova dos abusos. Na gravação feita em 2019, ele diz que vai raptar a jovem e afirma que tem vontade de colocá-la no colo, “sem os olhares de repreensão”.

“Eu espero que você não se sinta desrespeitada, mas quando eu falo que vou raptar você, vou roubar você, é porque eu tenho muita vontade de estar com você em um lugar onde eu posso te dar colo mesmo que você não tenha pedido. Vontade mesmo de te colocar no meu colo, te colocar assim amparada e ficar grudado em você para te escutar (…) Sem me preocupar com olhares de repreensão ou qualquer coisa do tipo”, dizia um trecho do áudio atribuído ao professor.

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Na época do áudio, a suposta vítima já tinha 20 anos e não estudava mais no mesmo colégio. Contudo, segundo ela, os abusos aconteceram principalmente quando a relação era entre professor e aluna.

Uma outra ex-aluna do Colégio Brigadeiro Newton Braga disse que ao ouvir o áudio que o ex-professor teria mandado para outra estudante, ela só lembrava das mensagens que recebia de Eduardo Mistura.

“Ao ouvir o áudio que ele mandou para a (nome em sigilo), eu lembrei que era exatamente como ele fazia comigo. Exatamente a mesma coisa: ‘Vou te colocar no colo’, ‘quero te dar carinho””, disse a jovem.
Abraços longos e apertados
Outras estudantes ouvidas pelo g1 recordaram, constrangidas, uma prática comum do professor Eduardo Mistura. Segundo elas, o professor tinha a mania de abraçar algumas alunas de forma prolongada e bastante apertada.

Segundo os relatos, Mistura tinha o costume de esperar pela entrada de todos os alunos ao lado da porta da sala de aula. Os meninos, ganhavam aperto de mão ou “soquinhos”. Já para as meninas, o tratamento era mais carinhoso.

“Tinha também essa questão dos abraços. Era 7h da manhã e ele ficava na porta da sala para dar abraço nas meninas. Com os meninos ele falava só assim de mão (dando soco). Ele não fazia com todas as meninas, mas tinha também esses abraços demorados. Era muito demorado mesmo. No final da aula também. Era muito estranho. Você se sentia muito desconfortável”, contou outra ex-aluna.

Professor de Educação Física ‘sonhador’
Não foi só o professor de história da instituição militar que virou alvo de denúncias. O professor de Educação Física do colégio na Ilha do Governador, Álvaro Barros, ficou conhecido pelos alunos como sonhador.

O apelido, aparentemente inocente e lúdico, segundo as denúncias, revelava um modo repetitivo e inconveniente de abordar alunas menores de idade através das redes sociais. Álvaro ficou conhecido como “sonhador” por sempre dizer que havia sonhado com suas alunas.

 

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Em um dos prints, é possível ver que, em um espaço de quatro dias, sem que a aluna respondesse nenhum dos comentários, ele enviou sete mensagens.

“Eu sonhei com você um dia desses”
“Oiê… Ta por ai?”
“Bom dia, bom final de semana, fique com Deus!”
“Que maneiro… Vc dançando, muito bonita de se ver!”
“E se me permite dizer, muito sexy também!”
“Tá de parabéns… Bom domingo para você linda”
Para uma outra aluna, Álvaro dispara as seguintes mensagens:

“Cada coisa que a gente sonha (…) Acho que fim de ano paro de pensar em vc como aluna… rs. E vejo uma bela mulher aflorada. Pois é. Minha imaginação é fértil. Fica a mil. Lindaaa”
Para essa mesma aluna, no dia 25 de dezembro de 2014, Álvaro desejou “feliz Natal” e emendou comentários sobre um novo sonho.

“Querida, um abraço apertado em você. Lembrei de uma coisa aqui e deu vontade de mandar um aperto”.
A aluna então pergunta: “Lembrou de que?”
E o professor responde: “De um sonho que tive com você. Nem sei se te falei. Já tem tempo isso. Engraçado que ficou guardado!”
Mesmo com o passar dos anos, o comportamento de Álvaro Barros parece não ter mudado. Seis anos depois, já em 2020, o professor procurou uma outra aluna menor. Dessa vez, a abordagem aconteceu por mensagens em um aplicativo de conversas.

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Nas mensagens, a jovem parece comentar sobre sua rotina durante a pandemia, quando as aulas presenciais foram suspensas.

Ela diz: Eu nem parava em casa. Agora eu só posso ficar em casa. Eu to surtando real.
Álvaro responde: Eu também. Vou te amarrar e te chicotear. Kkkk
Ela: kkkkk
Álvaro: Rsrsrs Eita, gostou da ideia?
Álvaro: Olha lá heim. Kkkk
Ela: Meu Deus professor kkkkkkkkkk
Álvaro: Tá se descobrindo. Tô falando sério
Ela: ?????????

Professor de história nega as acusações
Por telefone, o professor Eduardo Mistura rebateu cada uma das acusações feitas contra ele. Segundo ele, todas as denúncias surgiram no ‘exposed’ realizado por alunos em uma rede social, onde o seu nome teria aparecido junto com outros professores.

“Até agora não aconteceu nenhuma constatação de que houve qualquer coisa relacionada a abuso sexual”, disse Eduardo.
Mistura afirma que as mensagens atribuídas a ele foram retiradas de contexto e que em relação ao áudio que ele mandou para uma ex-aluna, o material deve ser desconsiderado por que a pessoa já era maior de idade.

“Seria muito interessante verificar a origem dessas mensagens. De quem são? Eu sei que são de duas pessoas, duas pessoas que são amigas. No inquérito policial militar, a (nome em sigilo) já disponibilizou essas mensagens, disponibilizou os prints e os áudios. Só que essas mensagens não estão na integra, em momento algum nós temos mensagens na integra. São mensagens trocadas entre os anos de 2017 e 2020. A (nome em sigilo) era uma mulher maior de idade e que não tinha nenhum vínculo com a escola. Então a (nome em sigilo) trocou mensagens afetivas comigo após ter saído da escola e nós ficamos íntimos e essas mensagens aconteceram”, disse o professor.

“Essa história de ‘ouvir dizer’ não vale. Tem que provar. E todo ‘exposed’ ta recheado de mensagens de ódio, cheio de ‘ouvir dizer’, ‘ouvir dizer’, mas não prova”, comentou.
Sobre outras mensagens, o professor de história comenta que fazem parte de uma manipulação de uma das ex-alunas. Segundo Eduardo, essa ex-aluna teria o objetivo de prejudicar a carreira e a vida dele.

“Lá no exposed houve denúncias de assédio e ela viu o exposed com algumas coisas relacionadas a mim. Mas é aquela coisa, ‘eu ouvi dizer’. Quando ela viu, em 13 minutos, e eu tenho isso printado, ela construiu uma história. Ela pegou trechos desconexos, alterou a ordem das mensagens e em momento algum ela forneceu o contexto completo das mensagens”, explicou.

“Ta muito claro que ela misturou as mensagens”, completou.
“Os meus alunos me pegam no colo, os meus alunos me beijam e eles sabem dessa história do exposed. Eu não fujo dessa história não. Pode perguntar para eles. Teve aluno dizendo que participou de grupo de whatsapp para sujar a imagem de professores. A minha relação é muito boa com os alunos”, disse o professor.

Sobre a acusação de mandar que os alunos fizessem uma redação para que ele usasse as informações para escolher possíveis vítima, Eduardo negou e explicou que o trabalho faz parte de um estudo desenvolvido numa tese de mestrado, com o objetivo de se aproximar dos alunos.

“Isso foi uma pesquisa de mestrado, está defendido na Universidade Federal Fluminense e é um trabalho que me dá a possibilidade de trabalhar com história de vida, com resiliência, com dialogo, conhecer a realidade do estudante para me aproximar do estudante. Isso foi colocado no exposed e levantado no processo disciplinar, mas no processo administrativo disciplinar ele (o aluno que o acusou) desmente. E eu fui inocentado dessa questão”.

Já em relação aos abraços apertados que ele daria nas alunas mulheres, o professor de história afirma que esse é um tratamento que ele tem com todos que dão intimidade a ele.

“Como a gente mede um abraço apertado? Como a gente mede que um abraço é mais apertado com menino ou menina? Eu desmenti isso no inquérito policial militar. Eu abraço as pessoas da escola. Eu entro na escola apertando a mão das pessoas e abraçando, eu saio da escola apertando a mão das pessoas e abraçando. Hoje eu não faço mais isso. Quando um aluno vem me abraçar eu aviso que não pode. Eu abraço quem me dá intimidade pra isso”.

Para concluir, Eduardo Mistura comentou que não acredita ter nenhuma prova concreta indicando qualquer tipo de abuso com alunas menores de idade. O professor disse que espera ser inocentado de todas as acusações.

“Com relação a mim, eu quero que provem. Não tem prova. Eu quero que mostrem uma mensagem eu importunando uma pessoa menor de idade. Mostre uma mensagem com a pessoa dizendo ‘eu não quero’ e o Eduardo perturbou de novo. Não tem. Nem com a (nome sigílo) tem”.

“Eu espero que eu seja inocentado. Uma coisa que eu aprendi nesses últimos dois anos, é que precisa de um fato. As pessoas montam uma história. A gente está vivendo tempos difíceis no Brasil, é uma época de sociedade pós moderna. A sociedade pós moderna abriu mão da razão e muitas pessoas são manipuladas de modo geral. No momento atual, eu to preocupado. Mas embora eu esteja preocupado, eu espero ser inocentado por conta de não ter nenhum fato concreto contra mim”, finalizou Eduardo

O que dizem os outros envolvidos
Os responsáveis pelo Colégio Brigadeiro Newton Braga (CBNB) disseram que os casos citados ocorreram há aproximadamente dois anos e que não foram denunciados formalmente à instituição.

“Ainda assim, diante da gravidade da suspeita, a administração instaurou imediatamente, em 23 de junho de 2020, uma apuração por meio de Inquérito Policial Militar (IPM), o qual, após concluído, foi encaminhado ao Ministério Público Militar, em 27 de agosto do mesmo ano. Na ocasião, os supostos envolvidos ficaram também, por medida de cautela, afastados de suas funções por até 120 dias, prazo máximo previsto em lei”, dizia um trecho da nota.

“Como desdobramento, foi determinada, ainda, a abertura de Processos Administrativos Disciplinares (PAD) para apurar também a existência de faltas disciplinares por parte dos servidores”.

“A Força Aérea Brasileira reitera que atua para coibir irregularidades e que repudia condutas que não representam os valores, a dedicação e o trabalho do efetivo em prol do cumprimento de sua missão Institucional. Na mesma esteira, trabalha para manter o CBNB entre as melhores Instituições de Ensino do Rio de Janeiro, reconhecido por sua excelência e respeitado por sua tradição de ensino”.

Já o professor Álvaro Barros não retornou as mensagens e ligações feitas pela reportagem.