A Constituição do Império do Brasil, promulgada em 1824, previa no seu art. 5º que a religião católica apostólica romana era a religião do Império, sendo permitido às demais crenças apenas o culto doméstico.

 

Uma das grandes conquistas republicanas foi, um século depois da Revolução Francesa,  a separação entre a Igreja e o Estado. Quando se observa, ainda hoje, religiões sendo invocadas como pretexto para conflitos geopolíticos na Ásia, na África ou na antiga Iugoslávia, compreende-se o extraordinário avanço alcançado em nosso país, cujo povo tem muita e múltiplas fés convivendo em ambiente de tolerância e respeito mútuos.

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Exatamente por isso, devem ser registradas e condenadas as diversas atitudes que, iniciando por confundir a coisa pública com a fé religiosa, introduzem o gérmen da intolerância religiosa na atividade política.

 

Refiro-me, explicitamente, às tentativas de formação de “bancadas religiosas” nas casas legislativas e até ao ensaio de lançamento de candidaturas a cargos majoritários com o selo do fundamentalismo.

 

Nada contra o fato de parlamentares que comungam da mesma fé se encontrarem para orar e refletir. É até natural, se a sua fé for sincera, que compartilhem de um conjunto de princípios éticos e de valores morais que, no momento da tomada de decisões sobre certas questões, como o aborto ou a pena de morte, transcendem as fronteiras ideológicas e partidárias.

 

Tudo, porém, contra fazer da profissão de fé religiosa um argumento eleitoral, reduzindo a sublime mensagem do Evangelho ao oportunismo de um panfleto e fazendo do Criador um cabo eleitoral.

 

Nada contra a ativa participação de religiosos na vida pública. É um direito que lhes assiste, como a todos os cidadãos. Não, contudo, no interior dos templos e casas de oração. Ministros religiosos não têm o direito de transformar altares e púlpitos em palanques.

 

Até porque espaços dedicados ao louvor e à pregação da mensagem religiosa  não são apropriados  para o debate pluralista, indispensável à democracia.

 

Como argumentar racionalmente acerca da “origem divina” atribuída a uma determinada candidatura? A disputa eleitoral não pode converter-se em guerra santa.

 

Já basta a sanha mercadológica de certas seitas que, no vácuo de uma fiscalização democrática eficiente, utilizam os veículos de comunicação eletrônica para agredir, difundindo calúnias e preconceitos contra outros segmentos religiosos. O inaceitável chute na imagem católica de Nossa Senhora Aparecida é repetido quase diariamente por apóstolos do ódio contra o espiritismo e contra as religiões de origem africana, sem, no entanto, provocar reações de quem deveria zelar pela liberdade religiosa.

 

Como se sabe, a lei exige que a programação das emissoras de rádio e televisão assegure, entre outros, o respeito aos valores éticos e sociais da pessoa e da família, inclusive os de suas crenças, sejam elas quais forem.

 

A intolerância religiosa, como a racial, tem que ser combatida incessantemente. A fé que arranca tantos brasileiros dos vícios e do desespero, transformando positivamente suas vidas, reconstruindo famílias e pregando amor e fraternidade entre os homens, não pode ser objeto da manipulação de sacerdotes inescrupulosos e de aventureiros de todos os quadrantes políticos.

 

No Artigo 95 daquela Constituição imperial, estabelecia-se que somente os que professassem a religião do Estado e tivessem quatrocentos mil réis de renda líquida poderiam ser eleitos deputados.

 

Os que hoje aspiram a ingressar na vida pública deverão também, além de superar o poder econômico de muitos candidatos, ter que se submeter a novos autos-de-fé?

 

Em célebre passagem evangélica, Jesus expulsou os vendilhões do templo. Não seria o tempo de que seus fiéis expulsassem também os demagogos e os oportunistas?

 

Prezado(a) leitor(a): esse artigo foi publicado pela primeira vez no jornal O Globo em 09/11/1999. Na sua opinião, continua pertinente?

 

*LUIZ HENRIQUE LIMA   é professor e Auditor Substituto de Conselheiro  do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso (TCE-MT).

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