Na semana passada o Brasil recebeu com certo susto os dados do PRODES que denunciam aumento nos desmatamentos realizados na Amazônia brasileira. O objetivo do PRODES, que faz parte do Programa de Monitoramento da Amazônia, desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais, é estimar a taxa anual de desmatamento por corte raso, ou seja, a completa remoção da vegetação. Seus dados remontam a 1988 e incidem exclusivamente em áreas que nunca foram desmatadas. É o que chamamos de desmatamento de florestas primárias. Sua acurácia é de aproximadamente 95% de precisão.

Os levantamentos são realizados mediante análise das imagens de satélite, por fotointerpretação comparando a vegetação existente em ano anterior com a inexistência no posterior. O PRODES não identifica desmatamentos inferiores a 6,25 hectares. Assim, a quantia de área desmatada pode ser ainda superior aos números divulgados. Seus dados são altamente confiáveis porque os desmatamentos são identificados por profissionais seniores, de nossa “NASA” brasileira. Além disso, submetem-se a rigoroso controle de qualidade e auditorias, interna e externa – esta independente.

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Só que seus números não agradam governantes descompromissados com interesses ambientais. Na verdade, temos assistido uma grande desconstrução dos sistemas de proteção ambiental, retrocessos administrativos, legislativos e estímulos ao desmatamento, grilagens e outras formas de destruição ambiental. Não é possível existir governança ambiental onde a democracia está mitigada.

A alteração das funções do Ministério do Meio Ambiente no início de 2019 foi um prenúncio do que viria a ocorrer. Naquele momento, foi extinta a Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas e o Serviço Florestal Brasileiro, transferido para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. Logo após, diversos colegiados (inclusive de natureza ambiental) foram extintos e a participação social restringida pelo Decreto 9.759/2019. No ano seguinte as ações de defesa da Amazônia ficam a cargo do Conselho Nacional da Amazônia, que passa a ser comandando em ocasião futura pela Vice-Presidência e não mais pelo Ministério do Meio Ambiente, cujo então titular protagonizou a desastrosa fala de “passagem da boiada” em alusão à defesa de enfraquecer a legislação ambiental. O Conselho da Amazônia foi instalado sem representantes do IBAMA ou ICMbio.

A redução da composição do Conselho Nacional do Meio Ambiente (CONAMA), órgão responsável por orientar a atividade administrativa e legislativa ambiental, reduzindo a participação social, em 2019, foi outro marco. O Conselho, que era composto por 96 conselheiros representando os mais diversos segmentos, foi reduzido para 23 membros titulares. A sociedade civil, que detinha 22 representantes, passou a contar com apenas 4. Foi o enfraquecimento da principal instituição democrática de defesa ambiental, criada em 1981.

Depois veio a redução no orçamento dos órgãos de fiscalização, como IBAMA e ICMBio, que também suportam constantes diminuições em seus quadros funcionais. Outros fatos se seguiram, como o enfraquecimento do Fundo Amazônia, diminuição no número de autuações por infrações ambientais, tentativa de desacreditar o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais por divulgação de dados que tornava transparente o aumento dos desmatamentos, chegando a ser exonerado o então diretor Ricardo Galvão, seguindo-se, tempos depois, a exoneração da coordenadora de Observação da Terra por divulgação dos dados do desmatamento em junho de 2020. Em nível local, não se consegue obstar o desmantelamento do sistema de proteção ambiental, fato que ensejou uma denúncia à ONU.

O Ministério Público não se omitiu frente a tantos atos de estímulo ao desmatamento e desestruturação da política ambiental, tendo sido ajuizada ação de improbidade contra o então ministro do Meio Ambiente, a quem atribuiu diversas condutas, como algumas das acima descritas.

Discursos contra a política de preservação somados a ações concretas de fragilização das instituições de regulação, fiscalização e controle, atos como a liberação da exportação de madeira nativa, formam o caldo que ajuda a entender o aumento no desmatamento.

Nesse cenário, o Brasil protagoniza aumentos nos desmatamentos ano a ano. Em 2018 foram desmatados 75.360 hectares; em 2019 houve aumento de quase 35%, chegando a 101.290 hectares. No ano seguinte foram desmatados 108.510 hectares e em 2021 subimos para 132.350 hectares. Somente na atual gestão o aumento foi de mais de 75%. Esses dados são confiáveis, levantados pelo INPE e podem ser acessados por qualquer cidadão. Basta visitar o site do INPE, no endereço eletrônico http://terrabrasilis.dpi.inpe.br/app/dashboard/deforestation/biomes/legal_amazon/rates.

Historicamente, o Brasil não desmatava tanto desde 2006. Mato Grosso costuma ocupar o segundo lugar no nefasto ranking dos estados que mais desmatam. Contudo, é fato que no período de 2000 a 2005 Mato Grosso titularizou o primeiro lugar. Atualmente, Pará e Amazonas estão na linha de frente. Aliás, Amazonas pela primeira vez fica como segundo colocado.

É uma disputa triste porque está acabando com o bioma. Estudos de pesquisadores do quilate de Levejoy e Carlos Nobre (referências no tema) indicam que estamos muito próximos do ponto do não retorno. Significa dizer que em pouco tempo corremos o risco de chegarmos a um nível de estresse ambiental que será impossível reverter o bioma. Os cientistas explicam que esse processo de desmatamento levará à savanização do bioma, alterando suas características originais para se chegar, em pouco tempo, à perda das florestas. É um caminho sem retorno. Será a perda da maior biodiversidade do planeta.

E isso afetará profundamente o modo de vida e produção das outras regiões. O ciclo da água não é um círculo estático. A água de Mato Grosso não precipita em Mato Grosso. O que garante as chuvas na região Centro-Oeste, parte da Sudeste e Sul do Brasil, Bolivia, Paraguai e parte da Argentina é a floresta amazônica. E o norte de Mato Grosso é composto por essa floresta. Os cientistas explicam que a floresta funciona com uma bomba d’água que puxa o vapor do Oceano Atlântico e precipita na floresta. Depois evapora e as massas de ar seguem a oeste indo se encontrar com a Cordilheira dos Andes, onde encontram uma barreira natural, fazendo com que desçam para o sul, onde se precipitam e garantem as águas. Sem floresta não há evapotranspiração e as águas não chegarão a Mato Grosso. Isso quem nos diz é a ciência.

O problema é que os governantes se negam a reconhecer esses conhecimentos. Vivemos na era da desinformação, onde uma “fake news” de aplicativos de celulares têm mais credibilidade do que o conhecimento produzido pelos pesquisadores. Em que pese vermos diariamente notícias na mídia veiculando secas extremas em um local, enchentes alarmantes em outros, temperaturas elevadas que causam mortandade de pessoas e animais, o fato é que ainda existem aqueles que não acreditam nas mudanças climáticas. Entretanto, pesquisas bibliográficas evidenciam que mais de 95% dos cientistas atestam sua existência por meio de comprovação amparada em reconhecidas metodologias.

Há verdadeira omissão estatal.

Em Mato Grosso foram deflagradas autuações sem precedentes com o uso de modernas tecnologias. Nos últimos dois anos o Ministério Público identificou e iniciou investigações em quase 470 mil hectares desmatados desde 2008. São centenas de investigações instauradas para responsabilizar os degradadores no âmbito do premiado projeto Satélites Alertas. A Polícia Ambiental, que disponibilizou dois policiais para autuar remotamente, embargou mais de 70 mil hectares, dos quais pelo menos 50 mil só nos últimos meses de 2021. A SEMA (Secretaria de Estado de Meio Ambiente) autuou e embargou entre janeiro de 2020 e outubro de 2021 mais 640 mil hectares que foram desmatados ilicitamente. Os órgãos do estado aplicaram quase 3,5 bilhões de reais em multas, lançadas diretamente no CPF dos infratores, segundo amplamente divulgado. Comparadas com as multas aplicadas em 2019, houve um aumento, em 2020, de quase 400% em multas aplicadas.

Mas ao que parece os desmatadores não acreditam que essas autuações, investigações e embargos surtirão efeito prático. E isso se deve ao descrédito que o Estado brasileiro angariou nos últimos anos pelas anistias infindáveis, prescrições de multas aplicadas e outras facilidades obtidas. Em 2012 foram anistiados todos os desmatamentos realizados antes de 2008. Em 2019 o Governo Federal flexibilizou a cobrança das multas aplicadas e ampliou os descontos e possibilidades de acordos que beneficiam os desmatadores.

O Estado não tem firmeza em suas ações. Embora até o momento tenham sido apreendidos em Mato Grosso mais de 100 tratores de esteira, 130 motosserras, mais de 13 mil metros cúbicos de madeiras ilegalmente comercializadas e conduzidos à delegacia pelo menos 35 pessoas, não se obtiveram resultados concretos na diminuição das degradações. Isto porque o crime parece compensar.

Não se tem notícia de que permaneçam presos desmatadores. São raros os casos em que os tratores de esteira ou outros produtos do crime tenham sido destruídos. Os veículos apreendidos logo acabam sendo restituídos e voltam para a criminalidade ambiental.

É preciso se tratar o meio ambiente com responsabilidade. E para isso precisamos olhar o passado e entendermos que estamos na direção errada. Sem um conjunto articulado de medidas a serem deflagradas pela união dos entes federativos e da sociedade continuaremos caminhando para o caos ambiental. E isso nos faz lembrar da responsabilidade que temos para com nossos filhos e netos. Qual será o habitat que deixaremos para eles? Desde que a Comissão Mundial sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento publicou o Relatório Brundtland é que se inclui no conceito de desenvolvimento sustentável a premissa de que nossa geração pode satisfazer suas necessidades atuais, mas sem comprometer a capacidade das gerações futuras de suprir suas próprias necessidades. Esse conceito foi encampado oficialmente na Eco 92 pelo Brasil e pelo mundo. Mas aqui é simples falácia.

Refletimos sobre o tema desmatamento zero. Conversamos com alguns pesquisadores e técnicos locais, consultamos bibliografia especializada e logramos apresentar algumas sugestões que, se encampadas pelas autoridades responsáveis, poderemos caminhar em caminho outro. Mas é preciso uma nova forma de pensar, um outro agir. Isto porque os resultados do PRODES para Mato Grosso e para o Brasil indicam, extreme de dúvidas, que nem um nem outro estão no caminho correto.

É preciso que cada cidadão entenda que aquele que desmata ou de qualquer forma incita ao desmatamento é, na verdade, inimigo da humanidade, pois age de forma irresponsável e criminosa sem se preocupar com sua própria descendência.

É preciso que haja uma ação fiscalizatória efetiva, em campo, com contratação de fiscais e analistas ambientais. A Polícia Militar Ambiental deve ser ampliada para que sejam incluídas companhias ou batalhões especializados em todas as comarcas de Mato Grosso com efetivo adequado e condições de logística como barcos, veículos traçados, fardamento, armas. É urgente a necessidade de ampla, irrestrita e efetiva interiorização da SEMA. Sem fiscais não há autuação pessoal, direta e com resultados imediatos. E os fiscais precisam estar acompanhados de policiamento ambiental adequado, capacitado, ostensivo e repressivo. A presença do estado policial em todas as comarcas em quantidade e qualidade, especializados na defesa ambiental, deve ser uma política de Estado. Policiamento ambiental e fiscalização intensas.

Urge sejam decretadas medidas emergenciais. Todas as autorizações de desmatamento emitidas e em vigor devem ser imediatamente suspensas. E não se deve expedir nenhuma outra autorização enquanto o desmatamento não estiver completamente controlado e todas as áreas degradadas ou subaproveitadas estiverem produzindo ou recuperadas. Todo desmatamento em Mato Grosso deve ser tido como ilegal. É preciso coragem para ampliar essas limitações a todos os planos de manejo. Uma árvore cortada deve ensejar repressão policial imediata, com prisão. Impõe-se que o Congresso Nacional promova alterações legislativas para que o crime de desmatamento ilegal seja severamente apenado. Hoje é considerado de menor potencial ofensivo, com pena de três meses a um ano de detenção. O fato é que ninguém fica preso, mesmo se for condenado, pois existem medidas substitutivas, como prestação de serviços à comunidade ou outras penas alternativas. Isso estimula o crime e a reincidência.

Os embargos precisam ser aplicados e fiscalizados. E o não cumprimento deve ser considerado crime com penas mais severas. Para isso precisamos que o Congresso Nacional passe a legislar com maior rigor. Contudo, o que vemos, no âmbito ambiental, é tendência diametralmente oposta, já que as anistias e alterações que se tem verificado sempre beneficiam os infratores.

É preciso tratar o desmatador como criminoso e destruídos os instrumentos do crime. Assim, tratores de esteira, motosserras, veículos utilizados na infração devem ser destruídos, inutilizados. Normalmente, à apreensão segue-se a restituição e reinserção na prática dos mesmos ilícitos. É preciso dar um basta. O crédito rural deve ser obstado àquele que tem autuação em seu CPF.

Desmatar milhares de hectares exige investimentos de bilhões. Quando foram feitos os cortes do orçamento do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (COAF) que impediram a modernização de seus sistemas de controle o efeito foi colateral. Hoje o Ministério Público e a Polícia Federal, por exemplo, não têm amplo acesso a relatórios de inteligência que poderiam identificar movimentações vultuosas em instituições bancárias, corretoras, Bolsa de Valores e transportadoras de dinheiro vivo. Seria preciso investimento em sistemas de inteligência para rastrear somas de dinheiro movimentadas na região amazônica para se chegar aos que financiam o desmatamento, desestabilizando suas estruturas financeiras.

Existe uma organização entre os desmatadores. Precisamos de investimento em geotecnologias de informação e inteligência. Isso passa também por priorizar a educação ambiental e o fortalecimento da pesquisa acadêmica e profissional, que precisa ser fortalecida e estimulada. O que se verifica é ação contrária. A tendência tem sido diminuir, inviabilizar ou dificultar acesso às bolsas para pesquisadores de Mestrado e Doutorado.

No início deste artigo falamos em governança, o que pressupõe um Estado forte e líder que respeite a participação da sociedade na tomada de decisões e não sua exclusão. As comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, os extrativistas, os ribeirinhos, os caboclos e os pescadores locais, dentre outros, devem ser incluídos nos processos de governança ambiental, junto com representantes do Estado, da ciência e da pesquisa.

A comunidade europeia começa a impor embargos para a produção nacional. Ainda pode ser tempo de mudar antes que esses embargos sejam fortes de tal forma que venham a inviabilizar inclusive o modelo econômico ruralista do agronegócio.

E assim terminamos este artigo, como expressão de uma angústia de quem consegue olhar o que estamos fazendo e projetar um futuro não promissor, mas passível de mudança de rumos.

 

*JOSÉ ANTÔNIO BORGES PEREIRA   é procurador-geral de Justiça de Mato Grosso.

**MARCELO CAETANO VACCHIANO é promotor de Justiça, coordenador do Centro de Apoio Operacional Ambiental do Ministério Público de Mato Grosso e doutorando em Ciências Ambientais pela Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat).