“É preciso que tudo mude, se quisermos que tudo continue como está.” A frase está em um romance do italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa [1896-1957] que, publicado em meados dos anos cinquenta do século passado, tornou-se em um clássico da literatura ocidental. Com efeito, ‘O Leopardo’ é bem um retrato da situação política da Itália, entre as dubiedades e variantes das mudanças sociais do século XIX. Então, a sutileza que está na frase, em que a aristocracia se vê forçada a fazer mudanças para que as coisas continuassem exatamente como a aristocracia queria, é a mais autentica realidade na vida pública de países e até de instituições e organizações da sociedade. Daí porque ela se tornou uma expressão recorrente além do romance que, por seu valor intrínseco, ter se tornado uma obra mestra.
Mas, afinal, irá me perguntar o leitor, o que tem a ver Tancredi Falconeri com o objeto deste artigo? Vamos então a ele.
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Não irei repetir aqui o relato sobre a presença da entidade dos advogados nos momentos mais marcantes das últimas cinco ou seis décadas da vida brasileira. Não é momento este para ficar polindo troféus por mais meritórios que o sejam, até porque, se para alguns os feitos são desafios importantes para passos ainda maiores e definitivos, para outros é uma forma de, olhando pelo retrovisor, não dar passo nenhum ou fingir que dará algum passo um dia. Infelizmente, estes últimos tem tomado conta da história da entidade.
Os advogados mato-grossenses terão uma nova eleição para a sua diretoria agora em novembro. Nos velhos tempos, me refiro a uma época em que uma eleição da Ordem alimentava grandes expectativas, não só entre a categoria mas mesmo na sociedade civil. É bem verdade que era uma época dos grandes temas nacionais: a luta contra a censura e pela liberdade de imprensa, contra as prisões arbitrárias e a tortura, pelas eleições diretas, pela Anistia ampla, geral e irrestrita, pela Constituinte. Hoje os temas candentes e preocupantes não são de menor importância, mas a entidade dos advogados já não mais empolga. Curioso e lamentável é que mesmo os temas “domésticos”, ou seja, aqueles que dizem respeito exclusivamente aos advogados já não mais geram expectativas. As causas dessa afasia política são várias. Mas algumas saltam aos olhos. É que aquele diferencial que presidentes, como um Raymundo Faoro [1925 – 2003] para citar um único mas simbólico exemplo, criaram, já deixou de existir. E tal circunstancia é devida sobretudo à estrutura engessada da Ordem que tão pouco vem permitindo os ares de efetiva e concreta renovação. Quando digo renovação não me refiro apenas a troca de nomes, que por vezes pode ocorrer. Não trato daquela mudança, a que se referiu Lampedusa, que muda apenas nomes e as fotos, para tudo continuar igual. Não. Mas quero dizer, sim, às verdadeiras mudanças, aquelas que inovam trazendo novos ares, que são efetivamente transformadoras.
Uma mudança real que promova uma transformação na política da entidade dos advogados, vale dizer, tanto no seu relacionamento com a categoria profissional, para que não se torne apenas um órgão arrecadador, quanto na discussão sobre a consolidação das instituições democráticas e na participação da vontade popular, bem como no estabelecimento da primazia dos valores éticos universais. Uma mudança que venha a derrogar e superar as contradições acachapantes em que se enreda a entidade.
Ora, as diferentes chapas concorrentes vêm mantendo, ao longo do tempo, um discurso que no fundo, com mínimas diferenças, se igualam. Não vi ainda proposições substanciosas que visem a uma mudança de rota. Uma mudança fundamental para desatar o nó górdio de uma cadeia de contradições. Vejamos, sob o meu modesto e desinteressado visor:
1 – O primeiro deles diz respeito à transparência do processo eleitoral. A OAB sempre defendeu com muita ênfase que as eleições de um modo geral devem ser transparentes. Portanto, em seu próprio caso, isto se iniciaria pela (a) obrigatoriedade da declaração da origem dos recursos financeiros, ou seja, quem são os doadores para a campanha; (b) demonstrar onde e como foram feitos os gastos; (c) estabelecer um teto para os gastos; (d) a apresentação de “Ficha Limpa” para todos os candidatos, ficando impedidos todos aqueles que já foram condenados pelo Conselho de Ética, ou pela Justiça comum, em última instancia, e, (e) a propaganda eleitoral não pode ser tão ostensiva, já que se tornou muito assemelhada à disputa por um cargo de deputado, de prefeito etc.
2 – Simultaneamente, o processo democrático deve atingir a própria estrutura da disputa. A OAB lutou pelas eleições diretas em todos os níveis e pelo respeito à participação das minorias. No entanto, no seu quintal isso não acontece. A eleição para presidente é indireta e as minorias votadas não tem participação qualquer. Portanto, impõe-se: (a) eleição direta para presidente; (b) reintrodução do voto em candidato individual e não na chapa completa, com isso estabelecendo o sistema proporcional, o que permitirá a que as chapas concorrentes, desde que alcancem um percentual mínimo de votos, algo em torno de vinte por cento, por exemplo, tenham representantes no Conselho. Tal providencia é extremamente importante, pois o Conselho, não sendo jungido à mesma Chapa da Diretoria, torna-se mais independente e atuante. Isto significará que, estando presentes correntes minoritárias, onde vozes discordantes serão ouvidas, mais representatividade, vale dizer, ser mais respeitada. Vale lembrar, aos ilustres colegas: a presença da oposição é sempre salutar; (c) autorização para o lançamento de candidaturas avulsas, tanto ao Conselho como para a Diretoria, não necessariamente compondo uma chapa; (d) criação de uma comissão independente – que não pertença nem à Diretoria nem ao Conselho – para fiscalizar o processo eleitoral e inclusive a posterior prestação de contas.
3 – A indicação de um membro para os Tribunais é uma conquista constitucional, portanto democrática e de interesse o mais amplo possível, tanto dos militantes do Direito como da sociedade como um todo. A indicação da lista sêxtupla feita exclusivamente pelo Conselho é restritiva, portanto não plural, não democrática. Assim é que a escolha do Quinto Constitucional, para todos os tribunais, deve ser procedida pelo voto direto de todos os inscritos na entidade e com ela regulares, e não apenas pelo Conselho, fechado e, não raro, eleito já com o compromisso de indicações.
4 – Os Conselheiros Federais deverão ser obrigados a prestar satisfação de suas atividades à toda a categoria profissional. As discussões das questões aqui apresentadas devem ser feitas em âmbito nacional.
5 – Reorganizar o Instituto dos Advogados, tornando-o um centro de debates e de propostas no campo jurídico-político. Nesse sentido, deve ser colocada a criação de uma revista para a circulação dessas ideias.
Falei em contradição pelo nó górdio atado à história recente da OAB. Um nó que está estrangulando a sua longa tradição vanguardista no campo do Direito institucional e que vem provocando, a cada pleito, número crescente de abstenção. Sem se falar no desinteresse crescente da categoria profissional pela participação política, que sempre foi o apanágio dos grandes causídicos e que geraram a incisiva participação em momentos decisivos da história pátria. Para que as coisas realmente mudem e não que lamentavelmente fique como está é preciso cortar esse nó górdio. E para tal não é necessário sequer ter a firmeza e a disposição de um Alexandre Magno, basta aos advogados terem a coragem e a determinação para resgatarem a tradição cívica e democrática de sua respeitável instituição.
*SEBASTIÃO CARLOS GOMES DE CARVALHO é professor universitário e advogado. Publicou, entre outros, “A Natureza pede Socorro”, uma abordagem político-filosófica da ecologia. Membro da Academia Mato-Grossense de Letras. E, também, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros (RJ) e da Academia Paulista de Letras Jurídicas, entre outras instituições.
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