A interrupção do jogo entre Brasil e Argentina, no domingo, em São Paulo, ocorreu por causa de uma invasão de campo. E não porque um dos times abandonou o gramado. Essa conclusão está no relatório oficial da partida, escrito pelo colombiano Juan Alejandro Hernández, que atuou como delegado da partida.
O documento, ao qual o ge teve acesso, foi anexado à investigação aberta no início da semana pelo Comitê de Disciplina da Fifa. A reportagem também obteve uma cópia do relatório do árbitro venezuelano Jesús Noel Valenzuela, outro documento que foi incluído na apuração. Diz o relatório do delegado:
– […] houve uma invasão ao campo por mais gente, então tomei a determinação de mandar as equipes aos respectivos vestiários para evitar agressões. A Argentina acatou, e o Brasil permaneceu em campo – diz um trecho do relatório, redigido originalmente em espanhol.
A invasão ao campo e a interrupção da partida ocorreram porque quatro jogadores argentinos – Martínez, Lo Celso, Romero e Buendía – estavam em situação irregular. Como estiveram na Inglaterra (onde moram) no período de 14 dias antes de sua entrada no Brasil, teriam que cumprir uma quarentena antes de poderem circular pelo país.
No entanto, os jogadores chegaram ao Brasil na sexta-feira (dia 3 de setembro), às 8h, e mesmo sem terem prestado a informação sobre a Inglaterra, puderam treinar normalmente em São Paulo. Enquanto o caso não for analisado pela Fifa, Brasil e Argentina ficam com um jogo a menos, e a tabela de classificação das Eliminatórias para a Copa do Mundo de 2022 fica com um asterisco.
“Omissão involuntária”
O relato do delegado do jogo, Juan Alejandro Hernández, começa na véspera, sábado, quando os envolvidos na organização foram informados de que funcionários da Anvisa se dirigiram ao hotel onde se hospedava a seleção argentina, para averiguar uma possível infração sanitária.
O delegado da partida informa que o médico da seleção argentina, Daniel Cabrera, admitiu às autoridades sanitárias do Brasil que houve uma “omissão involuntária” de informações sobre a passagem de quatro jogadores pela Inglaterra, o que exigiria deles uma quarentena de 14 dias na chegada ao Brasil.
– […] As autoridades declararam que houve divergências na declaração [dos argentinos] ao entrar no país, uma vez que somente declararam sua passagem pela Venezuela. A este pedido, o delegado da AFA, Daniel Cabrera, afirmou que houve uma omissão involuntária.
A partir daí, houve “vários telefonemas de funcionários da autoridade sanitária”, e uma nova reunião foi marcada para as 17h do sábado. Deste encontro participaram o ministro em exercício da saúde, Sérgio Yoshimasa Okane, representantes da Anvisa, da AFA, da CBF e da organização do jogo – entre eles o próprio Juan Alejandro Hernández, autor do relatório.
– […] ao final do encontro solicitaram que os quatro jogadores descessem com os seus passaportes para serem notificados da infração. No entanto, os jogadores não se encontravam no hotel, pois às 17h10 tinham ido para para o treino, como previsto.
Essa ausência dos jogadores “incomodou as autoridades sanitárias”, segundo o relatório de Hernández. Eles então afirmaram que a seleção argentina tinha que preencher um formulário de solicitação e enviá-lo em 30 minutos para alguns endereços de e-mails.
Essa troca de e-mails ocorreu, conforme o ge revelou na segunda-feira. O médico da AFA, Daniel Cabrera, enviou o e-mail às 18h30. Uma funcionária do Ministério da Saúde pediu mais informações, o argentino forneceu os documentos que faltavam e não houve mais resposta.
Reviravoltas no dia do jogo
O relatório do jogo, produzido por Juan Alejandro Hernández, informa que, na manhã de domingo, precisamente às 7h20, dia do jogo, entrou em contato com o representante da AFA para perguntar se havia recebido uma resposta da autoridade sanitária brasileira. “Responderam que ainda não”. Prossegue o relatório de Hernández:
– Às 11h30 nos dirigimos ao estádio e ainda não obtivemos resposta.
A situação mudaria por volta das 13h10.
– Recebi a comunicação do delegado da AFA de que a polícia havia chegado ao hotel e que afirmava que os quatro jogadores mencionados não poderiam comparecer ao jogo e que deveriam ser colocados em quarentena de 14 dias no hotel, para que não pudessem viajar com a delegação argentina ao final do jogo.
Neymar, Messi, Scaloni e Tite conversam após a interrupção — Foto: Marcos Ribolli
Essa situação também mudaria em pouco tempo. Diz o documento que está em poder da Fifa:
– A saída da delegação argentina ao estádio estava marcada para as 14h. Eu os contatei e […] informaram-me que a polícia os deixou sair do hotel, que tudo estava resolvido e que seria assinado um ato notificando os jogadores sobre a violação do regulamento.
Essa falta de coordenação entre Anvisa e Polícia Federal é o que mais intriga as pessoas envolvidas na organização do jogo. Nesta semana a Anvisa diz ter informado a PF às 11h39 sobre os argentinos estarem em situação irregular. Mas o delegado da partida informou ter recebido a informação de que “tudo estava resolvido”.
A Argentina chegou ao estádio por volta das 14h30. E a história teria uma nova reviravolta logo depois, às 15h40, quando chegaram ao estádio os agentes da Anvisa para notificar os jogadores sobre a violação da norma sanitária.
Juan Alejandro Hernández informou em seu relatório que estava em contato com os agentes da Anvisa, que “funcionários da CBF intervieram no assunto”, e que foi acordado que a notificação seria feita no intervalo. Mas imagens da TV Globo mostram que os agentes da Anvisa não aceitaram a sugestão de esperar até o fim do primeiro tempo.
Ameaça de prisão
O delegado do jogo escreveu que foi ameaçado de prisão caso tentasse impedir a entrada em campo dos agentes da Anvisa.
– Às 16 horas começou uma reunião [na beira do campo] e os dirigentes decidiram entrar em campo. Tentaram detê-los, mas eles afirmaram que eram autoridades, que ninguém poderia detê-los e que, se o fizéssemos, poderiam privar-me da minha liberdade, ameaçando a todos os dirigentes da Conmebol com retaliação. No minuto 5 do jogo, a autoridade da Anvisa entrou em campo, sem estar credenciado. Não foi possível obter o nome do funcionário.
Jogadores da Argentina deixam o gramado — Foto: Marcos Ribolli
Juan Alejandro Hernández então contatou o quarto árbitro para interromper o jogo. Segundo o relato do delegado, imediatamente outros três funcionários da Anvisa entraram no campo, todos sem as respectivas credenciais, e discutiram com o jogador argentino Marcos Acuña.
É neste momento que ele toma a decisão de mandar as equipes ao vestiário – determinação que a Argentina segue, o Brasil não.
Negociação no vestiário
Enquanto a Argentina desceu para o vestiário e a seleção brasileira ficou em campo, os funcionários da Anvisa insistiam em levar os quatro jogadores – Martínez, Lo Celso, Romero e Buendía. Os três primeiros eram titulares e estavam em campo no momento em que houve a invasão ao gramado.
Num documento publicado nesta semana, a Anvisa afirmou que o presidente da CBF, Ednaldo Rodrigues, tentou intermediar uma negociação com o governo federal, por meio da Casa Civil. Tanto a CBF quanto a Casa Civil negaram que houve essa negociação.
Ednaldo Rodrigues nega que tenha intermediado contato com a Casa Civil — Foto: Victor Pozella
Trinta minutos após a interrupção da partida, o delegado Juan Alejandro Hernández comunicou aos árbitros e aos dirigentes das duas seleções a suspensão definitiva do jogo. O último parágrafo de seu relatório diz:
– Às 19h10 as autoridades de saúde [da Anvisa] deixaram o estádio e 30 minutos depois a Argentina deixou o estádio rumo ao aeroporto, onde os quatro jogadores deveriam ser avisados da violação da regra sanitária. Às 21h40, a Argentina decolou para Buenos Aires.
Relatório do árbitro
O relatório do árbitro venezuelano Jesús Noel Valenzuela é muito mais sucinto, porque não trata do que aconteceu na véspera, só do que ocorreu após o início da partida, e praticamente repete as informações prestadas pelo delegado do jogo.
– No minuto 5 do jogo recebo informação do quarto árbitro para que interrompa o jogo, já que uma pessoa não credenciada que manifestava ser autoridade sanitária (Anvisa) entrou no terreno de jogo sem autorização, solicitando a apresentação de quatro jogadores da Argentina. Ao perceber a pessoa não autorizada dentro do terreno de jogo, interrompo a partida. Após isso entraram outras três pessoas, do mesmo órgão sanitário (Anvisa).
– Começaram os diálogos entre o delegado do jogo e estas pessoas, junto com o coordenador e oficial de segurança. Então chegaram alguns jogadores das duas seleções tratando de conciliar com essas pessoas. Por instruções do delegado do jogo tomou-se a decisão de retirar a seleção argentina até os vestiários, e cinco minutos depois nos dirigimos até o vestiários.
Após 30 minutos, relata o árbitro Jesús Valenzuela, o delegado do jogo o informou do cancelamento da partida.
– As autoridades da Anvisa mantinham sua intenção de retirar os jogo os quatro jogadores da seleção argentina, três deles estavam como titulares. Portanto, por este motivo o jogo foi cancelado. Após isso, os gerentes das duas seleções foram informados de que se tomou a decisão de suspender o jogo. (Globo Esporte)