Marcelo Medeiros assumiu a presidência do Internacional com o clube na Série B. Numa fase constrangedora em todos os aspectos. Com o segundo lugar, em 2017, recolocou-o na primeira divisão. Vice-campeão da Copa do Brasil em 2019, vice-campeão do Campeonato Brasileiro em 2020, o dirigente resgatou a autoestima do torcedor colorado. A análise é do jornalista especializado em negócios do esporte, Rodrigo Capelo. Confira:

Ao mesmo tempo em que conduziu a recuperação esportiva, o dirigente colocou a associação na pior condição financeira de sua história recente. Em 20 anos, não há uma temporada com tantos indicadores negativos quanto os registrados ao término de 2020.

Medeiros foi questionado sobre as finanças em sua entrevista coletiva de despedida – em dezembro, ele deu lugar a Alessandro Barcellos, seu vice-presidente de finanças e depois de futebol. O então presidente deu a versão dele sobre os resultados alcançados por sua administração.

– O Inter gastou do tamanho do Inter. Em 2019, o Inter teve o terceiro maior faturamento do país, ficando pela primeira vez na frente de Corinthians e São Paulo. Essa próxima gestão pode dar uma contribuição nesse aspecto.

A afirmação está errada de ponta a ponta. O terceiro maior faturamento do país em 2019 foi o do Grêmio. E o Internacional esteve à frente de Corinthians e São Paulo em várias ocasiões nas últimas décadas. No trecho que realmente importava, os gastos, não houve aprofundamento.

Em termos de posicionamento perante a opinião pública, a administração de Medeiros conduziu o clube por vários anos como se as finanças estivessem sendo reorganizadas. Só em 2020, com a pandemia, seus dirigentes começaram a usar palavras como crise e cortes.

– Até antes da pandemia, nós tínhamos feitos uma projeção de que o Inter poderia terminar esse ano com superavit. Mas em razão da perda de receitas que a pandemia nos causou, ela vai ficar para o ano que vem – disse o cartola.

A informação também está errada. No plano orçamentário que a diretoria colorada produziu para 2020, havia uma expectativa de R$ 14 milhões em deficit (prejuízo) – a diferença negativa entre receitas e despesas. O resultado contabilizado foi de R$ 91 milhões negativos.

Qual a situação verdadeira das finanças coloradas? Quais são os riscos que o endividamento oferecem ao futebol? Neste texto, o ge se baseia nas demonstrações financeiras do Internacional, referentes ao ano passado, para ajudar o torcedor a entender o quadro.

As finanças do Internacional — Foto: Infoesporte

As finanças do Internacional — Foto: Infoesporte

Panorama

A relação entre faturamento (tudo o que foi arrecadado no ano) e endividamento (o que havia a pagar no último dia de cada exercício) aponta a capacidade que o clube tem de honrar seus compromissos. Quando deve muito mais do que arrecada, a situação complica.

É o caso do Internacional. Pela primeira vez em 20 anos, o clube registrou dívidas que correspondem mais do que o dobro de sua arrecadação. Existem adversários ainda piores nesse quesito – o que talvez ofereça algum alívio, pois a concorrência em campo é o que importa.

E há quem esteja na situação “oposta”. O Grêmio tem o dobro de receitas em relação ao endividamento. Esse contraste entre os gaúchos também é uma novidade relativamente recente. Há alguns anos, colorados estavam melhores do que gremistas no dinheiro.

Receitas

Ao analisar o faturamento no detalhe, é preciso tomar cuidado com as receitas relacionadas a direitos de transmissão. Como o Campeonato Brasileiro foi adiado e encerrado somente em 2021, parte dos pagamentos vinculados a ele foram adiados para o próximo exercício.

No Internacional, este montante equivale a R$ 26 milhões, segundo relatório que a administração colorada anexou ao balanço. Isso indica que parte relevante do dinheiro com mídia não foi perdida, e sim postergada para as demonstrações financeiras de 2021. Menos mal.

Ainda nos direitos televisivos, houve uma redução significativa em 2020 por causa da Copa do Brasil – aí, sim, dinheiro que entrou a menos no caixa. Como o time foi eliminado nas quartas de final pelo América-MG, a comparação com a final da edição anterior fica ingrata.

O departamento comercial e de marketing não foi mal em suas receitas, com patrocínios e licenciamentos, mas registrou em 2020 uma redução de R$ 13 milhões em relação a 2019. Também ficou abaixo do que o Grêmio faz no lado azul do Rio Grande do Sul.

Nas linhas diretamente ligadas à torcida, o Internacional tem uma força considerável em seu quadro social. Os R$ 66 milhões arrecadados equivalem a várias vezes o valor obtido por adversários como Corinthians e São Paulo, mesmo com uma torcida menor.

Nas transferências de jogadores, o número alcançado, de novo, não foi ruim. Mas ficou abaixo do que o clube havia contabilizado no ano anterior, também abaixo do que estava previsto pela diretoria. O Inter tem um ótimo histórico como vendedor, e aí, quando não cumpre expectativas, acaba tendo uma frustração no que deveria ser só alegria.

Orçado versus realizado

A administração de Marcelo Medeiros também pode ser avaliada por meio da comparação entre orçamento (com projeções feitas pela diretoria para a temporada) e balanço (com o que efetivamente alcançou). Spoiler: os números estão tão vermelhos quanto o clube.

Nas receitas, a diretoria previu a arrecadação de R$ 392 milhões em 2020. Na realidade, entraram apenas R$ 281 milhões. Não podemos esquecer que R$ 28 milhões foram adiados para o exercício seguinte, de 2021. De qualquer maneira, haveria um buraco considerável nas contas.

Isto acontece por dois motivos. Um deles é a pandemia do coronavírus, citada pelo ex-presidente. O Internacional esperava R$ 18 milhões nas bilheterias e conseguiu apenas R$ 4 milhões. Não tinha como ser diferente, pois ninguém conseguiria prever uma catástrofe dessas.

Em todo o resto, a pandemia tem pouco a ver. O outro motivo é o orçamento produzido com projeções exageradamente otimistas. Se falta receita em uma linha ou outra, mas a perda numa é compensada por um número acima da expectativa noutra, não tem problema. Quando há frustrações grandes em todas as frentes, houve erro de planejamento.

E o mais impressionante é que o Internacional teve bom desempenho esportivo. O time por pouco não foi campeão nacional. Isto o favoreceu na parte variável dos direitos de transmissão, deu bons argumentos ao departamento comercial, empolgou o torcedor, aumentou a vitrine dos jogadores do elenco. Nem assim as metas foram cumpridas.

2020Orçado (em R$ milhões)Realizado (em R$ milhões)Variação (em R$ milhões)
Direitos de transmissão135101-34
Marketing e comercial5140-11
Bilheterias184-14
Associação9066-24
Outros32-1
Transferências de jogadores9568-27
Folha salarial do futebol-174-186-12
Resultado financeiro-34-29+5
Resultado líquido-14-92-78

Do lado das despesas, o blog pinça a folha salarial do futebol. Um item que é composto por salários, encargos trabalhistas, direito de imagem e gratificações (bichos). Este é o indicador econômico que possui maior correlação com a qualidade apresentada em campo.

A diretoria do Internacional previa uma redução considerável em relação aos R$ 202 milhões que tinham sido gastos em 2019 nesta linha. E houve, de fato, uma diminuição. A pandemia obrigou o gastador Medeiros a apertar os cintos. Mesmo assim, o número contabilizado no fim do ano, R$ 186 milhões, estourou o orçamento.

O resultado financeiro inclui uma parte problemática para o clube colorado. Como está muito endividado, só em juros e multas foram desperdiçados R$ 21 milhões. Outros R$ 22 milhões foram gastos com despesas bancárias, diretamente vinculadas a empréstimos.

O número final só está melhor do que havia sido orçado porque, entre receitas financeiras, foram contabilizados R$ 22 milhões em descontos por renegociações de impostos atrasados. O problema é que esse dinheiro não entrou no caixa; só deixou de sair. Enquanto as despesas financeiras do parágrafo anterior tiveram de ser desembolsadas.

Em meio a tantos furos no planejamento, o resultado líquido, que já seria negativo se tudo tivesse dado certo, acabou muito pior do que o esperado. O deficit (prejuízo) de R$ 92 milhões na temporada foi o pior dos últimos 20 anos da história do Internacional. E aí vira dívida.

Dívidas

Tudo o que foi dito tem relação com o passado do Internacional. Receitas abaixo da necessidade, despesas reduzidas em quantidade insuficiente, contas no vermelho. A partir daqui, aparecem os números que demonstram mais claramente os riscos para presente e futuro.

O endividamento colorado como um todo aumentou. Ao verificá-lo no detalhe, com a classificação de acordo com o prazo para pagamento, existe uma pequena boa notícia. Dívidas de curto prazo (que vencem em menos de um ano) foram reduzidas no decorrer de 2020.

A dificuldade continua. Com R$ 282 milhões a pagar em 2021, o Internacional segue sem ter condições de honrar todos seus compromissos. Como é que poderia, se a relação entre receitas e despesas está negativa? Se a arrecadação inteira é menor do que isso?

Na prática, a diretoria faz o que pode para “rolar” a dívida. Pega empréstimos em bancos, renegocia prazos com credores, busca acordos para evitar que o quadro piore. Em última instância, quando o credor insiste em receber, o calote leva a cobranças judiciais, multas e juros.

O Internacional buscou crédito para segurar as pontas. Como em 2020 não era mais segredo para ninguém que as finanças iam de mal a pior, por causa das más decisões de Marcelo Medeiros e das dificuldades impostas pela pandemia, a saída foi buscar empréstimos com instituições financeiras. Quais? O balanço não diz, embora devesse.

Essas são as dívidas bancárias de curto prazo:

  • R$ 68 milhões em 2019 (a pagar em 2020)
  • R$ 61 milhões em 2020 (a pagar em 2021)

Bom sinal que elas tenham reduzido um pouco, não? Nem tanto. Pois as dívidas de longo prazo, a pagar depois de um ano, dispararam.

  • R$ 24,5 milhões em 2019
  • R$ 77 milhões em 2020

A mecânica desses empréstimos é importante de ser compreendida a esta altura. Quando a diretoria do Internacional vai a uma instituição financeira e pega dinheiro, precisa deixar alguma garantia de pagamento. Quase sempre: contratos confiáveis. Neste caso, foram dados cerca de 20% dos direitos de transmissão e 15% do quadro social.

O cronograma de pagamento é o seguinte:

  • R$ 30 milhões a pagar em 2022
  • R$ 21 milhões a pagar em 2023
  • R$ 18 milhões a pagar em 2024
  • R$ 8 milhões a pagar em 2025

Valores que aumentarão ano a ano por causa dos juros.

Em resumo, o buraco que a gestão de Medeiros deixou nas contas foi tapado com antecipação de receitas. Os recursos consumidos por ele correspondem não só ao mandato do sucessor, Alessandro Barcellos, como também do presidente depois dele. Parte das receitas com televisão e quadro social nem chegará ao caixa colorado.

E toda essa história responde apenas por 23% do endividamento. Também há dívidas com jogadores, técnicos e funcionários, inclusive em ações judiciais; parcelamentos de impostos que deixaram de ser pagos no passado, renegociados recentemente; e dívidas com fornecedores, intermediários e clubes, incluídas no gráfico abaixo em “outros”.

O perfil do endividamento do Internacional por tipo
Um terço da dívida colorada, “fiscal”, preocupa pouco. O restante oferece problemas variados
Em R$ milhões139139206206131131119119BancárioFiscalTrabalhistaOutros050100150200250
Fonte: Balanços financeiros

Nota técnica: no balanço, o Internacional registra um passivo de R$ 272 milhões relacionado ao arrendamento do Beira-Rio. Esta linha não requer desembolso de dinheiro, apenas o cumprimento do contrato, portanto não foi considerada no cálculo do endividamento colorado

Futuro

Não custa lembrar que a administração de Marcelo Medeiros começou em 2017, na Série B, com uma estratégia questionável. O clube já tinha problemas financeiros, e o presidente achou que era a hora de gastar ainda mais. Teve a maior folha da divisão e subiu em segundo lugar.

Se o desafio técnico era menor, por que não começar a colocar a casa em ordem? Na época, direitos de transmissão eram pagos integralmente, o mesmo valor da Série A, pois o Inter tinha contrato fixo com a Globo, que independia da série. Medeiros jogou a chance fora.

Com o passar dos anos, o Inter recuperou desempenho esportivo. Isto é inegável. A bola bateu na trave duas vezes. Se tivesse sido campeão da Copa do Brasil em 2019, ou se tivesse ganhado o Campeonato Brasileiro em 2020, a percepção da opinião pública sobre o cartola seria outra.

Como em nenhum momento a direção de Medeiros equacionou e reduziu as dívidas, certa de que um título a consagraria, o futuro está cercado de indefinições. Até quando será possível manter salários em dia? Jogadores importantes terão de ser vendidos? Haverá reforços?

O alívio para o torcedor colorado é que, bem, tem gente muito pior. Seja porque estão ainda mais endividados, seja porque não têm a mesma capacidade de geração de receitas, há clubes que convivem com o terror do rebaixamento. Não parece ser o caso do Internacional.

Uma nova administração começou em 2021. Alessandro Barcellos foi eleito para este triênio. O dirigente não tem o benefício da novidade; afinal, foi vice-presidente de finanças e também de futebol na gestão de Medeiros. Ele é corresponsável, em menor grau, sobre o quadro.

Entretanto, Barcellos tem a oportunidade de fazer diferente. De buscar vitórias ao mesmo tempo em que recoloca, administrativa e financeiramente, o Inter na posição de clube-modelo para o resto do país. O tempo dirá se o novo chefe fará o que é difícil, mas necessário.

A análise é do jornalista Rodrigo Capelo/Globo Esporte