O princípio da autonomia supõe a necessidade de se respeitarem a liberdade e autodeterminação do paciente e ser esta considerada a própria fonte de seus direitos, como uma forma de limitar os poderes dos médicos e de proteger este paciente contra os tratamentos não autorizados por ele.

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É preciso observar que, muitas vezes, é difícil determinar os elementos que constituem uma ação autônoma do paciente, principalmente quando ele está em situação de dor e sofrimento, quando ele está em situação de vulnerabilidade.

Evidente que o conceito de capacidade para consentir em um determinado tratamento médico é bem mais complexo do que uma análise da capacidade em face de uma questão negocial, do que a capacidade para o exercício de direitos patrimoniais posta no Código Civil, mas o ponto de partida será sempre as regras da capacidade da Teoria Geral do Direito Civil, e aqui o critério adotado pela ordem jurídica diz respeito a perfeição da vontade manifestada, a sua compatibilidade com a realidade ou veracidade consciente. Esse critério busca avaliar se a vontade da pessoa não está viciada por algum fator externo ou interno que influencie a autenticidade da sua declaração, fazendo com que o paciente manifeste uma vontade que não seria verdadeiramente a sua vontade se tivesse a exata noção da realidade dos fatos ou se as circunstâncias fossem diferentes.

A capacidade do paciente está ligada tanto a sua capacidade de fato, dentro da Teoria Geral do Direito Civil, quanto a faculdade que tem de, por si só, tomar decisões necessárias em sua vida como sujeito de direito e obrigações, e, ainda mais, está ligada verdadeiramente a sua capacidade de tomar decisões acerca das intervenções médicas.

Temos que ter em mente que a capacidade para consentir nos casos que envolvem a relação médico-paciente tem por fundamento bens diferentes daqueles do direito patrimonial, que são a vida, a saúde, a integridade física e o livre desenvolvimento da personalidade, e assim, as condições do paciente irão influenciar no modo com que essas informações serão prestadas, bem como na capacidade do paciente para decidir.

Portanto, podem ocorrer casos em que a pessoa pode ser considerada capaz para os atos da vida civil, mas que não tenha capacidade para expressar sua vontade em questões médicas, por estar, por exemplo, diante de uma dor insuportável, ou por ter um medo relevante que a impeça de expressar sua vontade naquele momento. É certo que a vontade interior deve ser exteriorizada através de sua declaração, de modo que o mundo exterior possa reconhecê-la.

A doutrina, na aérea jurídica, tem se preocupado com o estudo da vontade a partir dessas duas perspectivas, pois são aspectos importantes para a determinação da eficácia da declaração na relação médico-paciente. A construção da vontade dentro da perspectiva psíquica impõe ao paciente uma deliberação, uma análise interior, de acordo com as informações que ele venha receber do médico e as circunstâncias que envolvem o tratamento médico, e sua validade e eficácia dependerão de que a declaração exteriorizada esteja em consonância com o íntimo querer da pessoa e não se traduza, em face das circunstâncias, em uma falsa noção da realidade.

Assim, temos que, diante dos estímulos internos, em razão aos quais tem relevância as informações prestadas pelo médico, as circunstancias do tratamento, dores, sofrimentos, valores sociais e culturais, o paciente vai ponderar o que imagina ser melhor para si naquele momento, elaborando sua vontade, e ai surge um outro momento que a vontade precisa ser manifestada no mundo exterior, e reconhecida pelo médico, e, assim, a validade e eficácia dessa declaração do paciente irão depender de diversos fatores: se o paciente tem a exata noção da realidade dos fatos, se foi devidamente informado, se é capaz, se as dores não viciaram a sua vontade, e por fim se essa vontade exteriorizada está em consonância com a sua vontade interior.

A livre e autônoma vontade do paciente pode ser firmada em um documento chamado Diretiva Antecipada de Vontade, onde ele manifesta expressamente a sua vontade quanto a receber ou não cuidados, procedimentos e tratamentos médicos, podendo, ainda, designar um representante, nesse ou em outro registro escrito qualquer, para decidir por ele sobre os cuidados à sua saúde, nas situações em que estiver incapacitado de expressar livre e autonomamente a sua vontade.

Temos que as diretivas antecipadas entram na relação médico-paciente como meio para que a autonomia privada do paciente, antes de um possível estado de incapacidade, possa ser exercida, assegurando a sua dignidade e autodeterminação. E, ainda, direcionar o profissional médico e sua equipe para que seja empregado o tratamento e cuidados previamente escolhidos pelo próprio paciente.

Considerando que o paciente não possui conhecimento técnico-cientifico, faz-se mister que o médico lhe forneça e esclareça todas as informações para que possa tomar a decisão mais adequada, por meio de um termo livre e esclarecido, que consiste na exposição pelo médico de todas as terapêuticas possíveis a que o paciente possa se submeter, informando-lhe os riscos e benefícios em linguagem acessível, para que o paciente livremente possa escolher se quer ou não se submeter aquele determinado tratamento. O termo informado deve ser, via de regra, escrito, para a segurança de ambas as partes.

Nesse sentido, não se deve entender que o dever de salvar vidas não é salvá-las a qualquer custo, mas garantir a dignidade do doente, tratando-o como pessoa, e não como instrumento de uma terapêutica inútil e que cause mais dores e sofrimentos ao paciente terminal, configurando a distanásia.

A Constituição Federal de 88 nos traz a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos do nosso Estado, e assim, na medida em que determinados doentes não tem mais chance de cura, e querem evitar tratamentos que lhe causem mais dores e que somente prolongam seus sofrimentos, deve ser-lhes dado o direito de morrer com dignidade.

É certo que em dado momento o paciente em estado terminal ficará inconsciente ou incapaz de manifestar sua vontade, e nesse momento que se destaca a importância das Diretivas Antecipadas de vontade como instrumento através do qual o paciente poderá ter expressado sua vontade quanto a submeter-se ou não a determinados tratamentos médicos que vão somente prolongar a sua morte causando-lhe mais dores e sofrimentos inúteis, facultando-lhe, portanto, optar por uma morte digna.

O paciente acometido por doença grave incurável, mesmo que inicialmente esteja sem dores ou sofrimento, já se encontra em descompasso pelo mal estar mental e social a que está submetido, e a embora a continuidade da doença possa vir a acarretar inúmeras transformações, causando abundante sofrimento, como dor física, além de aspectos sociais e psicológicos, o paciente tem ao seu dispor, a chamada ortotanásia, que é a ‘morte a seu tempo certo’, quando poderá renunciar a submeter-se a tratamentos e procedimentos desnecessários e inúteis, que somente prolongarão sua vida e submeter-se, ou não, apenas aos métodos paliativos de tratamento, que possibilitem minimizar as dores e o sofrimento.

Nessa reflexão já se filiava Hipócrates, quando pregava que o médico deve curar quando possível, aliviar quando necessário e consolar sempre, em outras palavras, quando não há mais nada a fazer sob o aspecto médico.

Como o tema é complexo é causa inquietações, o Conselho Federal de Medicina, no artigo 1º da Resolução 1805 de 09/11/2006, permitiu que o médico intervisse no procedimento que prolongasse a vida do doente terminal, respeitando a vontade do paciente ou de seu representante legal.

Essa Resolução 1805 provocou a propositura de uma Ação Civil Pública, em 9 de maio de 2007, pelo Ministério Público Federal, contra o Conselho Federal de Medicina, distribuída perante a Décima Quarta Vara Federal do Distrito Federal – autos 2007.34.00.014809-3. Referida ACP tramitou durante pouco mais de 3 (três) anos, pois alegava o MPF que se tratava de matéria legislativa, da qual o Conselho Federal de Medicina não detinha competência para legislar, além de não poder regulamentar, como ética, uma conduta tipificada como crime.

Ao final, o Magistrado, em sentença, na data de 1º de dezembro de 2010, julgou improcedente a Ação Civil Pública, da qual não houve recurso, ao argumento de que a conduta balizada pelo Conselho Federal de Medicina não se enquadraria como crime. Logo, a ortotanásia seria conduta atípica e, portanto, não violaria o ordenamento jurídico brasileiro.

Com a Resolução 1931, de 24 de setembro de 2009, foi editado o Novo Código de Ética Médica, trazendo à tona o respeito à autonomia da vontade do paciente como uma de suas premissas fundamentais, especialmente em seu art. 24, quando deixa claro que o direito de decisão livre é do paciente, sendo vedado ao profissional médico não garantir esse direito.

O código de ética médica explica que a autonomia da vontade do paciente deve ser respeitada, vedando ao médico o desrespeito às prescrições ou tratamento de outro médico, exceto se com manifesto benefício ao paciente. Assim, o novo Código de Ética Médica se pauta na possibilidade de permissão da ortotanásia, ponderando seu respeito para com a dignidade da pessoa humana.

A CF de 1988, intitulada Constituição Cidadã, também evidência, como fundamentos do Estado Democrático de Direito, dentre outros, em seu art. 1º, III, a dignidade da pessoa humana como princípio constitucional, o que é corroborado pelo art. 5º, caput, II e III, quando enaltece o direito à vida, à liberdade, à autonomia da vontade e proíbe tratamento desumano ou degradante.

Além das disposições constitucionais, o CC de 2002 auxilia no estudo, especialmente em seus arts. 11 e 15, haja vista que referidos dispositivos proíbem a submissão de pessoa a tratamento ou intervenção médica em havendo risco de vida e que esse direito, ainda, se constitui como irrenunciável.

Embora ainda não exista no Brasil uma lei que regulamente as Diretivas Antecipadas de Vontade, por que está previsto no Projeto de Lei PL 5.559/16 – Estatuto dos Direitos do Paciente, é possível afirmar que, na prática, elas efetivamente existem, mesmo que de forma tímida, pois estão em consonância com a norma Constitucional, posto que se trata de negócio jurídico unilateral, personalíssimo, revogável, gratuito e informal.

A única norma vigente no ordenamento jurídico brasileiro é a Resolução 1995, de 9 de agosto de 2012 do CFM, que em seus arts. 1º e 2º, define as diretivas antecipadas de vontade como os desejos manifestados pelo paciente acerca de tratamentos a que quer, ou não, ser submetido, especialmente quando incapacitado para se expressar, além de esclarecer questões limítrofes, inclusive quanto à hipótese de manifestação pelo representante designado do paciente. Há teórica vinculação do médico à manifestação de vontade do paciente, uma vez que exaure possíveis e eventuais demandas judiciais, tendo em vista o amparo legitimado pelo paciente, no exercício da sua autonomia da vontade.

Diante dessa definição, tem-se que se o médico suspender os procedimentos sem a devida manifestação de vontade do paciente, estará, em tese, praticando o crime de homicídio, pois a figura que desqualifica a tipicidade é a manifestação da autonomia da vontade do paciente.

Os Estados Unidos da América são pioneiros na matéria e iniciaram a utilização do testamento vital a pouco mais de 50 anos, sendo que sua expansão para a América Latina e Europa ocorreu ainda no final do século passado.

Quanto ao procedimento de expressão da vontade, para assegurar segurança jurídica ao declarante, a sugestão é que o documento seja lavrado por escritura pública, a fim de evitar o registro de um documento que possa, eventualmente, ser anulado por meio de ação judicial, mas nada impede que as diretivas antecipadas de vontade estejam inseridas em documento privado, mas de conhecimento dos familiares e, ainda, podem ocorrer em condições especiais, sob a forma verbal, informadas diretamente ao médico, que deverá inclui-las no prontuário médico do paciente.

Também se entende que os instrumentos mencionados devem ser levados a efeito por pessoa capaz, de acordo com os arts. 3º e 4º, do CC, de preferência sob orientação de um médico de confiança da família e de um advogado, a fim de estar plenamente ciente do que se está registrando, até porque os registros devem ser realizados em obediência à lei posta, embora seja possível a revogação a qualquer tempo, desde que utilizada a forma adequada.

Imperioso esclarecer que a declaração ocorre antes do paciente estar acometido por doença, mas se ocorrer no leito hospitalar, poderá o médico colher a declaração de vontade do paciente no próprio prontuário médico, para que fique registrada e justifique alguma prática específica, que atenda à vontade do paciente, valendo lembrar que se deve ter o cuidado de ser esse prontuário assinado pelo paciente ou seu representante, para segurança das partes envolvidas.

Vale ressaltar que com a publicação da Resolução do CFM, houve um aumento de mais de 700% na formalização de diretivas antecipadas de vontade nos Tabelionatos de Notas em todo o Brasil.

Enfim, toda pessoa capaz pode fazer sua diretiva antecipada de vontade perante um tabelião de notas. Basta apresentar seus documentos pessoais e declarar que tipos de cláusulas deseja incluir. A escritura será apresentada aos médicos pelos familiares ou por quem o declarante indicar caso futuramente ele seja acometido por uma doença grave ou fique impossibilitado de manifestar sua vontade em decorrência de algum acidente.

Referencias:
Justiça Federal de Goiás. Ação Civil Pública n. 2007.34.00.014809-3. Disponível em: <http://s.conjur.com.br/dl/sentenca-resolucao-cfm-180596.pdf>. Acesso em: 20 dez. 2016.
CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA. Resolução n. 1805. Disponível em: <http://www.portalmedico.org.br/resolucoes/cfm/2006/1805_2006.htm>. Acesso em: 11 maio 2016.
HIPÓCRATES, MÉDICO GREGO. Disponível em: <https://www.ebiografia.com/hipocrates/>. Acesso em 30 nov. 2016.

OLINDA DE QUADROS ALTOMARE CASTRILLON é juíza de Direito e pós-graduanda em Direito Médico e bioética pela Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo