O futebol brasileiro passa por uma das crises financeiras mais severas de sua história. No ano em que a pandemia do coronavírus paralisou o mundo, este mercado, mais vulnerável do que deveria, registrou consequências que levarão muito tempo para serem superadas. A análise é do jornalista Rodrigo Capelo (Globo Esporte).

Dois indicadores apontam para o agravamento das finanças dos clubes. Na arrecadação, houve baixa. No endividamento, alta. De maneira que as dívidas dessas entidades, somadas, hoje representam mais do que o dobro do que elas faturaram em toda a temporada.

Os números correspondem à soma dos 20 clubes que disputaram o Campeonato Brasileiro em 2020 e aos quatro promovidos na Série B. Esta é a amostra usada pelo blog todos os anos. O Cruzeiro foi acrescentado em 2020, excepcionalmente, mesmo sem ter subido.

Este texto abre a série do ge sobre as finanças do futebol brasileiro. Nos próximos dias, serão publicadas análises individuais de cada clube. O ranking de transparência e confiabilidade, produzido com base nos balanços financeiros, ajuda a compreender o contexto deste esporte.

As finanças do futebol brasileiro em 2020/2021 — Foto: Infografia

As finanças do futebol brasileiro em 2020/2021 — Foto: Infografia

Panorama

A maneira mais simples de compreender o tamanho da crise instalada no futebol brasileiro está na comparação entre receitas e dívidas. O quadro, que vinha se agravando pouco a pouco com o passar dos anos, chegou à pior relação entre esses dois indicadores em 2020.

No total, os principais clubes do país arrecadaram R$ 4,67 bilhões no decorrer da temporada passada. Ao mesmo tempo, os endividamentos chegaram a R$ 10,83 bilhões. Mais do que o dobro. Se as dificuldades eram evidentes nos anos anteriores, agora estão dramáticas.

No gráfico abaixo, as receitas foram mantidas em seus valores nominais (sem ajuste da inflação), pois o intuito do cálculo é a comparação com as dívidas. Mais adiante, faremos a correção inflacionária para entender o crescimento/encolhimento real do futebol brasileiro.

Receitas

Em 2020, as receitas foram reduzidas em mais de R$ 1,1 bilhão em relação a 2019. Este número precisa ser compreendido com cautela, no entanto, porque a pandemia causou algumas anomalias neste mercado.

Uma vez que as competições foram adiadas e concluídas somente em 2021 – pelo menos as mais relevantes do ponto de vista financeiro –, parte desta redução no faturamento não se trata de dinheiro perdido, e sim de receitas que serão contabilizadas nos balanços referentes a 2021.

Por outro lado, houve perdas relevantes em relação às receitas de estádio. O recomeço dos campeonatos com portões fechados tirou dos clubes quase a totalidade do que aguardavam na venda de ingressos.

Em linhas gerais:

  • Os direitos de transmissão recuaram em 2020, porém essa diminuição se explica pelo adiamento de valores relativos a Campeonato Brasileiro e Copa do Brasil para o exercício de 2021
  • A área de marketing e comercial continua estagnada, com valores praticamente iguais aos que tinham sido contabilizados no ano anterior. Ela inclui patrocínios, publicidades e licenciamentos
  • Em torcida e estádio, houve o recuo mais significativo de todos. Em 2020, a redução em relação à temporada anterior foi superior a R$ 360 milhões. Neste item, entram bilheterias e associações
  • A linha outros reúne receitas com esportes olímpicos, loterias e outras não especificadas pelos clubes em seus balanços. Ela não tem relevância para o negócio como um todo, mas compõe o gráfico
  • Nas transferências de atletas, houve um recuo próximo a R$ 50 milhões na comparação com o ano anterior. Baixo demais para que se possa dizer que a pandemia e crises externas tenham prejudicado

Em outra linha de raciocínio, os dados permitem encontrar a variação real das receitas do futebol brasileiro. Este é um cálculo um pouco mais complexo, mas não muito, fundamental para que se tenha uma noção sobre o crescimento ou o encolhimento do mercado.

Recapitulando uma noção da economia: como a moeda vai perdendo poder de compra, conforme preços em geral sobem, é importante que comparações em séries históricas tenham valores corrigidos por um índice de inflação. Para que a comparação esteja correta.

Corrigir o faturamento do futebol brasileiro por meio do IPCA, considerado a inflação oficial do país, faz com que todos os números sejam trazidos a valor presente – especificamente, ao valor de dezembro de 2020. Daí, então, é possível notar o crescimento real do mercado.

Dívidas

Por parte do endividamento, os valores não devem ser corrigidos por nenhum índice de inflação. Como sobre eles incidem juros e multas todos os anos, o próprio mercado se encarrega de fazer com que os números sejam atualizados. A leitura fica um pouco mais fácil.

Enquanto nos anos anteriores as dívidas dos clubes vinham aumentando em ritmo próximo a 5% ao ano, nas últimas temporadas os dirigentes fizeram esse percentual disparar. Houve um aumento de 20% em 2019 e de mais 23% em 2020. A situação saiu do controle.

O que é mais grave: cerca de R$ 5 bilhões são devidos pelos clubes no curto prazo, isto é, com vencimento inferior a um ano. As complicações enfrentadas por cada um têm gravidades diferentes, mas de maneira geral este dado aponta para uma dívida impagável.

Em relação à natureza dessas dívidas, os credores são variados. Jogadores representam a maior parte, entre cobranças em ações judiciais, salários e direitos de imagem correntes e acordos de natureza trabalhista. Mas há muito mais gente nessa longa fila de cobrança.

O governo aparece como segundo maior credor. No gráfico abaixo, estão inseridos em “fiscal” todos os parcelamentos contabilizados por clubes, entre eles o Profut. São impostos que deixaram de ser pagos, muitas vezes com o cometimento de crimes tributários.

Instituições financeiras e partes relacionadas aparecem na sequência. Em geral, são dívidas de clubes com bancos e fundos que toparam emprestar dinheiro. Um tipo de crédito perigoso, pois costuma estar atrelado à cessão de receitas futuras como garantias.

Em “outros”, aparecem fornecedores, intermediários e outros clubes – com os quais se negociou a transferência de algum jogador. Dívidas protestadas na Fifa por credores estrangeiros que cansaram de aguardar o pagamento estão contabilizados nesta linha.

A pandemia do coronavírus causou consequências perversas no mercado do futebol. Competições suspensas, posteriormente retomadas com portões fechados. Perdas de receitas com bilheterias, acordos com jogadores e demissões em massa, tomada de empréstimos para dar conta das urgências. Essas foram notícias frequentes durante o ano.

Ainda que tenhamos de notar os efeitos de um período de exceção na história da humanidade, também é verdade que os números catastróficos do futebol brasileiro não se explicam só pela pandemia.

Individualmente, dirigentes gastaram muito mais do que podiam. Eles endividaram seus clubes excessivamente, muitas vezes com o endosso de imprensa e torcida, na busca pela consagração. Presidente campeão fica para a história. Mesmo que quebre a instituição.

Coletivamente, o país falhou ao não ter um mínimo de regulação para desestimular irresponsabilidades. Nem seu governo fez algo digno de nota, nem a estrutura federativa do futebol. Fair play financeiro e reformulação do calendário são reformas eternamente postergadas.

Como a falência do futebol brasileiro é evidente – escancarada pela destruição esportiva e financeira de instituições como Botafogo, Cruzeiro e Vasco, para citar apenas os piores casos –, o risco que se impõe a partir de agora é o da solução fácil. Perdão de dívida por parte do governo, salvação com dinheiro público, entre outros absurdos. A população precisa ficar atenta para não acabar pagando essa conta.

@rodrigocapelo

PS.: Escrevi um livro sobre o futebol brasileiro, “O futebol como ele é”, para contar como o dinheiro e a política interferem no que acontece em campo. Ele está à venda na loja da Grande Área (é só clicar no link).   (Rodrigo Capelo/Globo Esporte)