Há uma lógica cruel imposta aos clubes mais ricos nesta era em que o futebol concentra riquezas. Ganha-se um título e, minutos depois, o centro do debate já é o que se deve fazer para ganhar o próximo. Em especial se a taça erguida for a de um Estadual, há pouco tempo para desfrutar. Para quem contrata os principais jogadores, monta os elencos mais fartos, o mais difícil é encontrar a saciedade. A análise é do jornalista Carlos Eduardo Mansur para o Globo Esporte. Confira:
Com o Flamengo, não seria diferente. A hegemonia no Rio, mantida com o sexto tricampeonato da história do clube após a vitória por 3 a 1 sobre o Fluminense, por vezes parece ter mais efeito de redução de danos do que de celebração por um objetivo atingido. Evita-se a turbulência da derrota, mas imediatamente a cobrança é pelas ambições maiores. Encerrada a cerimônia no campo, a pergunta era se o desempenho no Carioca era o bastante para defender o bicampeonato brasileiro e retomar a Libertadores. A roda precisa girar.
A resposta pode começar pelo último gol do Estadual: a grande jogada de Pedro, o ótimo passe de Vitinho e o gol de João Gomes no rebote. Todos haviam saído do banco. Ainda que se aponte um desnível entre titulares e parte dos reservas no elenco rubro-negro, a oferta de qualidade técnica seguirá colocando o Flamengo como um dos favoritos a qualquer título no Brasil e na América do Sul.
Este Flamengo tem trunfos raros, como uma espinha dorsal com convocações recentes para seleções e que tem idades entre 22 e 30 anos. Ou seja, jogadores perto do auge das carreiras num continente que acumula adolescentes ainda não absorvidos pela Europa ou veteranos que retornaram. Além disso, esta base de time entra agora na terceira temporada. Há uma identidade de jogo e de equipe, um coletivo, um funcionamento razoavelmente automatizado.
É justo dizer que o Fluminense tem condições financeiras bem inferiores ao Flamengo. Mas foi sobre o tricolor, quinto colocado no último Brasileiro e clube que acaba de ir ao mercado para encorpar seu elenco, que o Flamengo teve 70% de posse de bola e 17 finalizações contra cinco na final do Estadual. São bons sinais.
Mas o mesmo Estadual que entrega taça pede ressalvas. A temporada do Flamengo mostra evidentes questões que podem ser fatais num Brasileiro ou num torneio de mata-mata. A começar pela tal manutenção da base. Os próximos dias atualizarão a situação de Gérson, perda quase impossível de repor no mercado sul-americano.
É verdade que o Flamengo assume riscos com seu jeito ousado de jogar, mas a pressão feita nos rivais após a perda da bola precisa melhorar e pode ser mais coordenada. A jogada aérea nas bolas paradas defensivas é uma clara fragilidade. E ser um time que sofre gol em 90% das partidas em que usou titulares é uma estatística quase fatal em torneios com fases eliminatórias.
Tudo isso sem contar que o Campeonato Brasileiro traz um Palmeiras que pode ser ainda mais forte, sem contar os investimentos altos nos elencos de Atlético-MG e São Paulo, apenas para citar dois exemplos.
Ocorre que outro ponto merece ainda mais atenção. É natural times tentarem impor sua forma de jogar e tentarem conduzir as partidas para terrenos em que se sentem mais confortáveis. Mas o futebol é o mais caótico dos jogos e, por isso mesmo, o mais indomável. É muito frequente que, ao menos por momentos, o jogo mude de cara, o rival proponha algo inesperado, um gol mude o rumo da partida. E este Flamengo não vem reagindo bem a estas alterações de humor dos jogos.
O time de Rogério Ceni tenta fazer a partida ter o roteiro que lhe agrada: domínio da bola, rival colocado contra a sua própria área, controle através da posse para mover a marcação adversária e buscar o gol. Conseguiu tudo isso no primeiro tempo, ora pressionando o Fluminense contra seu gol, ora atraindo os sobrecarregados volantes Yago e Martinelli para explorar o espaço às costas deles. Foram 45 minutos sob medida.
Mas o tricolor, novamente, voltou do intervalo disposto a tentar uma pressão, a ficar um pouco mais com a bola, a subir a intensidade. Nestas horas, grandes times precisam recuperar a rédea. E o Flamengo tem uma habitual dificuldade quando isto ocorre: perde a sensação de controle. Como se estranhasse o novo contexto, passa a acumular erros técnicos e, pior, não consegue dar ao jogo a cara e o ritmo que lhe interessam. O Fla-Flu passou a ter idas e voltas, golpes e contragolpes. Passou a ter disputas pelo alto, divididas, bolas vivas, algo que interessava muito pouco ao Flamengo.
Um dos segredos de grandes equipes é controlar o ritmo do jogo, decidir o andamento e impor o estilo mais conveniente. Lógico que dois anos se passaram, o calendário se tornou mais duro e o contexto se alterou, o que torna qualquer comparação cruel. Mas apenas como referência, o Flamengo de 2019, de Jorge Jesus, era senhor das ações, ditava o ritmo. O time atual precisa evoluir neste aspecto.
Após vencer um Carioca sem que seus titulares tenham precisado jogar mais do que um terço dos jogos, novos desafios se impõem ao Flamengo, como é rotina nesta era do futebol. Em tese, o rubro-negro é o mais credenciado a novos títulos. Mas a caminhada será mais difícil se o time não evoluir. (Carlos Eduardo Mansur/Globo Esporte)