Em sete meses de pandemia, o Brasil chegou na tarde deste sábado, 10, à marca de 150.023 mortes por covid-19, de acordo com dados do levantamento realizado pelo consório de imprensa com as secretarias estaduais de Saúde. A análise da taxa de óbito em cada Estado também confirma o mau resultado brasileiro no combate ao novo coronavírus. Se fossem países independentes, quatro unidades federativas estariam no topo do ranking mundial com os piores índices de morte por milhão de habitantes.
Hoje, o Peru é quem apresenta a maior taxa de óbito no mundo, com 1.002 casos por milhão de habitantes, segundo aponta a organização Worldometers, que compila estatísticas de órgãos oficiais sobre a pandemia. Em números gerais, o Brasil ocupa a 5ª posição, atrás ainda de Bélgica, Bolívia e Espanha. Esta lista é formada só por países com mais de um milhão de pessoas, como faz o Ministério da Saúde em comparativos publicados nos boletins epidemiológicos, motivo pelo qual os europeus San Marino e Andorra foram desconsiderados.
Levantamento do Estadão Dados indica que quatro unidades do Brasil têm índice ainda pior do que o Peru. São eles: Distrito Federal (1.127 óbitos por milhão de pessoas), Rio de Janeiro (1.113), Mato Grosso (1.034) e Amazonas (1.019). A reportagem excluiu Roraima no ranking por ter população estimada de 605,7 mil habitantes – número inferior, portanto, ao critério adotado.
Na outra ponta da tabela, Minas Gerais aparece com a menor taxa do Brasil, de 381 mortes por milhão. Estados da região Sul, onde o coronavírus também chegou mais tarde, vêm logo em seguida: Santa Catarina (404), Paraná (410) e Rio Grande do Sul (451).
Segundo pesquisadores ouvidos pelo Estadão, o fato de a pandemia se manifestar em momentos e intensidades distintas ajuda a explicar a disparidade de mortes nos diferentes locais do Brasil – mas não é a única justificativa. Sudeste, Norte e Nordeste registraram pico de óbitos por covid-19 no período entre o fim de abril e meados de maio. Já as regiões Sul e Centro-Oeste apresentaram uma curva mais tardia, com maior patamar no mês de julho.
“No Brasil, a epidemia chegou em três lugares primeiro, com uma quantidade imensa de casos: São Paulo e Rio de Janeiro, que têm grandes aeroportos internacionais, e em Fortaleza, onde o turismo é forte e recebe voos da Itália”, relata o epidemiologista Paulo Lotufo, da Faculdade de Medicina da USP. “A idade é outro fator que precisa ser considerado. Enquanto na cidade do Rio de Janeiro 18% das pessoas têm acima de 60 anos, esse índice em Roraima é de 6%.”
Reitor da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), o infectologista Pedro Hallal avalia que a discrepância nas taxas também reflete as ações adotadas em cada lugar. “Os melhores resultados estão, sim, em regiões em que a epidemia demorou mais a chegar”, analisa. “Mas foram esses Estados que tomaram melhores medidas de controle, seja em termos de distanciamento social ou de preparação de leitos hospitalares.”
Para o pesquisador Marcelo Mendes Brandão, do Laboratório de Biologia Integrativa e Sistêmica da Unicamp, o resultado deixa em evidência a falta de coordenação nacional no enfrentamento ao novo coronavírus. Com a pandemia ganhando conotação política, segundo argumenta, medidas de isolamento perderam adesão nos Estados, governadores passaram a ser pressionados e alguns lugares deram início à reabertura antes da hora. No período, o governo Jair Bolsonaro ainda promoveu duas trocas no comando do Ministério da Saúde.
“A primeira acelerada da doença no Brasil acontece entre o fim de abril e o início de junho. Era neste momento de dispersão que deveria ter havido uma coordenação interestadual para frear a covid-19, a exemplo do que foi feito na Nova Zelândia”, descreve Brandão. “Mas aqui a gente perdeu o ‘timing’. Foi quando começou a história da cloroquina, da ‘gripezinha’ ou de ‘todo mundo vai pegar’. Estamos pagando por esse descontrole até agora.”
Responsável pela pior taxa do País, o Distrito Federal até interrompeu precocemente as atividades consideradas não essenciais, mas o governador Ibaneis Rocha (MDB) mudou de postura mesmo com novos casos de coronavírus aumentando. Em junho, ele chegou a declarar ao Estadão que as “restrições não servem mais para nada”. “(A covid-19) Vai ser tratada como uma gripe, como isso deveria ter sido tratado desde o início”, disse.
O Rio precisou lidar logo cedo com a chegada da doença (foi o segundo Estado brasileiro a registrar óbito por coronavírus) e convive com flagrantes desrespeitos ao isolamento social, num alto e baixo dos números de mortes desde então. No período, também sofreu com suspeitas de corrupção na área da Saúde. Em comum com Brasília, o Estado convive com presença de favelas e grande fluxo de pessoas entre regiões – particularidades que também precisam ser levadas em conta, de acordo com os cientistas.
“Rio e Brasília estão entre as maiores rendas per capita do Brasil. Com mais acesso à informação, era de se pensar que teriam maior controle sobre a pandemia, mas, quando a gente vai ver, Leblon e Ipanema são os locais com mais covid-19 no Rio. Em Brasília, é no Lago Sul. Ou seja, as maiores rendas trataram a doença como uma questão secundária”, diz Brandão. “Quem acaba pagando são as pessoas sem acesso a hospitais de ponta, que precisam trabalhar no shopping ou pegar transporte público. Essa diferença social também se reflete nas regiões de maior mortalidade do País.”
Consideradas fundamentais para detectar e isolar focos ativos da doença, políticas de testagem em massa nunca saíram do papel. Para Edimilson Migowski, professor de Infectologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), o Estado perdeu com o baixo alcance do sistema de vigilância, uma alternativa para identificar, monitorar e cuidar de pessoas infectadas. “Na capital, que puxa esses números para cima, a Saúde da Família é muito precária, talvez com 40% de cobertura”.
Segundo Migowski, em geral, as estratégias atuais também estariam “muito concentradas na profilaxia e prevenção”. Na visão dele, é preciso avançar em ações para além do uso de máscara e do incentivo à etiqueta de higiene respiratória. “Não existe trabalho nos outros dois pilares: instrumentalizar para que se identifique os casos e tratar precocemente os pacientes.”
Apesar de a média diária de mortes estar em queda no Brasil, os cientistas alertam que o patamar ainda é alto e que o controle de transmissão da covid-19 requer cuidados. A pandemia não acabou nem foi controlada. Um exemplo é o Amazonas. Primeiro a entrar em colapso, entre abril e maio, o Estado chegou a abrir valas coletivas e a usar contêineres frigoríficos para abrigar seus mortos, mas os casos caíram a partir do mês seguinte e houve reabertura de comércios e serviços. Em julho, Manaus se tornaria a primeira capital a autorizar retorno das aulas presenciais.
Com a retomada das atividades, no entanto, os óbitos por covid-19 começaram a subir novamente – neste mês, o Amazonas ultrapassou o Ceará na taxa de mortes por milhão de pessoas. Diante da explosão de novos casos, o prefeito de Manaus, Arthur Neto (PSDB), voltou a falar em lockdown, o fechamento completo da cidade, hipótese que foi descartada pelo governador Wilson Lima (PSC).
Cansado de isolamento social, Brasil busca saída por protocolos de convivência
Em números absolutos, os 150 mil mortos colocam o Brasil em segundo lugar do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos. Quatro a cada cinco municípios brasileiros já perderam alguém para o coronavírus. Em perspectiva, o contingente equivale a quase dois Estádios do Maracanã lotados e é maior do que as mortes provocadas por outras doenças, grandes tragédias ou violência urbana no País.
O Brasil registrou a primeira morte por coronavírus no dia 12 de março – a de uma mulher de 57 anos, moradora de São Paulo. Cerca de um mês depois, todos os Estados brasileiros já tinham notificado pelo menos um óbito. Segundo boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, hoje a maioria das vítimas é homem e apresenta algum fator de risco, como idade acima de 60 anos, problema cardíaco ou diabetes. Entre os óbitos notificados, também há 451 crianças de até 5 anos.
O Ministério da Saúde aponta que, ao todo, 4.608 cidades (ou 83% do País) já fazem parte das estatísticas de perdas para a covid. Por sua vez, em 5.565 municípios, o equivalente a 99,9% do Brasil, houve algum caso confirmado do novo coronavírus.
Embora a proliferação da doença tenha começado por grandes centros urbanos, ela também já se espalhou pelo interior. Pelos dados do Ministério da Saúde, 50% dos óbitos recentes foram registrados fora de regiões metropolitanas.
Para especialistas, em tese, o isolamento social continua sendo a melhor forma de conter a transmissão do vírus. Eles admitem, entretanto, que esta não é mais uma estratégia viável. Por questões sociais ou financeiras, uma parcela da população nunca pôde aderir à quarentena no País. Outros se negam a acatar a recomendação de cientistas e da Organização Mundial de Saúde (OMS). Quem ficou em casa, agora, também já está há tempo demais recluso, segundo avaliam.
“Psicologicamente, as pessoas começam a ficar pesadas. Esse período longo do Brasil no topo do gráfico foi cansando”, afirma Marcelo Mendes Brandão. Uma amostra desse problema, descreve, foi o aumento de casos registrados após o feriadão de 7 de setembro, quando hotéis voltaram a lotar e houve aglomerações em praias. “Hoje, o que nos resta fazer é combater maluquices de desinformação, como a história de que medição de temperatura pela testa causaria problemas de saúde, e também desenvolver um protocolo prático de convivência. Por exemplo: fui para rua e me senti mal, o que eu faço? Estou contaminado, quem eu procuro?”
Um dos defensores do lockdown durante os momentos mais críticos da pandemia, Pedro Hallal concorda que, na prática, não faz mais sentido fechar as cidades. “Fazer o distanciamento social está mais difícil, as pessoas estão cansadas e precisando sair de casa, seja por questões financeiras ou por problemas de saúde mental”, diz. “O #FicaEmCasa não é mais prioridade. Hoje, a gente tem de estar preocupado em usar máscara, manter hábitos de higiene e #EviteAglomeração.”
Hallal avalia, ainda, que médicos e hospitais estão atualmente mais preparados para lidar com a doença. “Uma pessoa que pegou covid-19 em março tinha muito mais chance de morrer do que quem pegou em setembro. Não é que hoje pode pegar, é que antes era mais grave”, diz. “É claro que a pandemia ainda é um problema, mas todas as evidências mostram que, no Brasil como um todo, a taxa de transmissão diminuiu e a média móvel de casos e de mortes está em processo de queda. A pergunta que tem de ser feita agora é: precisávamos ter chegado a 150 mil mortos? A resposta é ‘não’.” (Terra)